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12 de outubro de 2024

Dona Lílian

Introdução

Conheci Dona Lílian quando vim ao Rio de Janeiro, ainda na República da Sagrada Castidade. Antes de conhecê-la propriamente vi sinais de sua existência pelo resultado do seu trabalho, encontrando coisas mais organizadas aqui e ali, e os múltiplos ambientes da ReSaCa impossivelmente (e temporariamente) limpos

Nao lembro de a ter encontrado até o dia em que me acordou, interrompendo o pouquíssimo sono que intercalava entre meu trabalho, estudo e camaradagem com os demais membros da ReSaCa (vencer inexoravelmente no Mario Kart 64 e mentir sobre a vida no Rio Grande do Sul).

Não foi por isso que me acordou, não lembro a razão, mas na conversa que começamos me perguntou se eu vinha do Sul. Quando confirmei me contou um pedaço da sua história — que deve ter depois me contado, aos pedaços novos e repetidos pelo menos uma centena de vezes pela próxima década: sua família também era do Sul, onde o avô tinha alguma terra. Mas veio, vieram muitos, para o Rio de Janeiro, e uma família bem grande com pouca herança se dispersou. Mas ainda lembrava, com carinho, de ter tido um cavalo quando era criança.

Logo eram parte da minha rotina conversas onde ela me explicava a sua vida e o que acontecia na ReSaCa, incluindo de onde ela conheceu cada um dos membros. Me contava histórias com referências a detalhes e pessoas que não havia a mínima possibilidade de que eu conhecesse. Sabendo que eu conhecia muito bem Armando, Dona Lílian falava coisas como: "amanhã devo ir na casa do seu Emílio, amigo do Armando, ele está precisando porque a madrasta foi viajar". Eu não conhecia Emílio, que dirá sua madrasta. Isto não a impedia de me contar. E tanto pela insistência acabei por aprender sobre tantas pessoas com quem ela falava, mas eu nunca falei. 

Este, aliás, também é um bom exemplo daquela sua peculiaridade - raramente falava da sua história, ou passado, mas falava muito do que estava fazendo agora e do que ia fazer no futuro, especialemente no futuro próximo. Parece que ela nos usava para planejar sua semana? Como se preferisse concretizar suas ideias falando.

Ou ouvindo - aprendi depois que se não havia com quem falar destes planos, ela falava sozinha. Essa também era uma característica que testemunhei por centenas de vezes, a tal ponto que uma das frases que mais deve ter ouvido de mim foi - "como é que é, Dona Lílian?",  quando eu a interrompia, no meio de algo metade discurso, metade planejamento, e metade conversa consigo mesma. E ela sempre me falava, enfim, o como é que é - me explicando como, quando, ondes e porquês, embora frequentemente eu não fizesse a mínima ideia dos quems. 

De qualquer maneira, cada vez, sem falha, ela me falava invariavelmente continuando o assunto que, pra mim, já começava no meio. 

Acumulamos - nós, egressos da República, muitos dos quais, como eu e Luíza, continuaram com ela como diarista depois de emanciparem-se - muitas histórias sobre ela. São histórias que, no conjunto, devem conseguir explicar - como é que é, Dona Lílian?

Então eu vou contar como é que é, Dona Lílian, todo causo da senhora que eu lembrar, fora de ordem, talvez começando no meio, bem como você me contava.

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1. A amante amiga

Dona Lílian perguntou se meu celular era do Sul (como eu, pelo sotaque evidente). E era - claro, ainda contava moedas e dependia do 'plano família' dos meus pais. Perguntou se podia usar meu telefone pra fazer uma ligação pra um telefone "lá de Rio Grande". 

Estranhei quando ela discou, botou o telefone no ouvido, deixou chamar duas ou três vezes e, assim que alguém atendeu, me devolveu o telefone com uma expressão curiosa, um meio termo entre surpresa e travessura. Não entendendo bem o que era pra fazer devo ter titubeado até que ela me instruísse, mimicando silenciosamente, pra eu desligar.

- O que foi isso, Dona Lílian?
- É que foi ela que atendeu.
- Ela?
- É. A mulher do meu namorado.

Por vários dias recebi ligações daquele número e outros, com o DDD de Porto Alegre. Invariavelmente de uma mulher, talvez sempre a mesma, talvez sempre ela, me perguntando "quem é". Cada vez eu respondia um nome diferente, mas sempre dizendo que morava no Rio de Janeiro. Deve ter sido uma das primeiras oportunidades que tive de imitar sotaque carioca. Pena que não gravei.

Evidentemente ela já desconfiava de seu namorado, este homem do Rio de Janeiro, ou do Norte? De muitos lugares, cujo trabalho o levava de um porto a outro e em certo momento o trouxe até o Rio de Janeiro, antes de levá-lo a Rio Grande.

Ao contrário dos romances pulp coleção Sabrina (tive que perguntar ao ChatGPT e Google para lembrar) nos quais o homem é descrito como uma mistura vegetal-mineral-animal (com pernas que parecem troncos de sequóia, um abdômen duro como um cristal de quartzo, e referências animais reservadas para as cenas mais quentes), creio que este era um homem comum, de meia idade. Isto não o impediu de protagonizar uma cena de sedução na vida real.

Encontrou-se, na ocasião em que esteve no Rio de Janeiro, em um ônibus interurbano. Sei disso porque Dona Lílian contou com detalhes dignos daqueles romances a ordem dos eventos. Contou-me que sentaram em poltronas adjacentes, lado a lado, em silêncio quase total, mas tendo trocado gracejos e, presumo, olhares. Em algum momento, Dona Lílian levantou para ir ao banheiro e propositalmente roçou a sua saia na perna dele. Foi o suficiente.

Acompanhei por meses a saga, o affair. Usou meu telefone pra ligar pra ele diversas vezes, algumas com sucesso. Isso garantiu que eu continuasse a receber as tais ligações, aliás, mas isto mais me divertia do que incomodava. Marcou encontros com ele quando veio ai Rio e em algum momento, marcou um encontro em  alguma cidade de São Paulo (ou Espírito Santo?) onde ele supostamente morava.

Tempos depois me falou que estava desconfiada. Neste encontro no campo como mandante ele deu pra trás. Depois, fulana lhe disse que era porque ele tinha outra. Dona Lílian não curtiu a ironia de ser amante traída e planejou ir até lá pra confrontá-lo. Não lembro como ou com quem foi, mas foi. Algo de confusão aconteceu, mas os detalhes me escapam. Será que confrontou a outra? Só levou um perdido dele? Não lembro.

Mas lembro que no fim das contas a outra era a primeira. A ela, que era verdadeira outra, não sabia primeira, embora desconfiasse da Dona Lílian — que nesta nomenclatura seria a outra-outra. Tendo retumbantemente terminado com ele (mas acho que houve pelo menos um revival) Dona Lílian por fim atendeu a chamada da ela. Contou pra ela sobre a primeira e ela também terminou com ele. 

No vínculo de falarem mal dele, viraram amigas. 
 
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2. As Aventuras de Olívia com Dona Lílian

Em múltiplas ocasiões, ao longo dos anos, Dona Lílian me explicou que estava pagando algo aqui ou ali, em prestações, e pediu um pequeno adiantamento. Sempre foi totalmente correta e me pagou tudo de volta. Combinávamos de descontar um pouco aqui e um pouco ali dos pagamentos que eu fazia e logo já tinha acertado tudo. 

Em certa ocasião fez um grande gasto no cartão de crédito que costumava pegar emprestado da filha. Esse gasto foi para ajudar outra pessoa - uma vizinha, muito amiga (chegou a usar a expressão "irmã de criação", mas creio ter sido hipérbole), que queria organizar uma festa para uma menina da família. 

Aconteceu que por falha intencional ou acidental esta vizinha não conseguiu devolver o dinheiro - que seria usado para pagar a dívida do cartão - como havia prometido. Dona Lílian estava portanto enrolada com aquela dívida e sofreria juros abusivos. Emprestei o dinheiro pra cobrir a dívida inicial e apaziguar  o que já estava virando uma briga grave lá onde ela morava (pelo menos, pelo que ela me contara).

Ela ficou um pouco descontente de ter uma soma grande em débito comigo e me perguntou se podia ajudar com mais algo além do que a esporádica faxina. Morávamos em um apartamento pequeno e nem era muito factível precisar de mais ajuda doméstica mas logo outra oportunidade se apresentou -  marcamos viagem, eu e Luiza, e pela primeira vez seria impossível levar a cachorra junto. 

Nossa opção seria encontrar alguém para cuidar dela (o que poderia ser uma imposição chata, dado que a grande maioria das pessoas no nosso círculo social não teriam uma rotina na qual Olívia encaixaria sem dar muito trabalho), ou colocá-la em 'creche de cachorro'. Que era cara. Propus a Dona Lílian que cuidasse da cachorra até voltarmos - pagaria a ela (descontando um bom pedaço da dívida) o que doutra forma pagaria para a creche. Ela aceitou. 

Inaguramos aí o mecanismo de Dona Lilian cuidar da Olivia quando viajávamos. Ela adorava Olivia e a Olívia a adorava - era uma competição ferrenha de gostar muito. Acho que foi em parte o afeto que desenvolveu com Olivia que a levou a pegar a própria cachorrinha, a Pituxa (mas essa é outra história).

Eu sabia que Dona Lílian permitia transgressões alimentares da Olívia durante estas viagens. A cachorrinha deveria comer apenas ração, nunca da nossa comida. Mas voltávamos de viagem e Olívia curiosamente pedia comida na mesa do jantar, coisa que não fazia antes, e demorava pra se reacostumar à regra da normalidade. Aliás - as transgressões alimentares com Dona Lílian não eram apenas em viagem. Com ela Olívia era escancaradamente 'pidincha'. Pulava e latia, e eu falava: "Dona Lílian, ela só pede porque a senhora dá". "Mas eu não dou!", retrucava ela. E fatalmente, se eu me afastava da mesa por segundos, Olívia parava de latir e pular, e quando eu voltava (com a Olívia ainda se lambendo) a própria Dona Lílian já se defendia - "Não dei nada não! Foi pouquinho!", ou seja, defendia e confessava, assim mesmo, na mesma leva.

O que eu demorei a descobrir foi que Dona Lílian permitia transgressões também de passeio. Olívia deveria sempre andar de coleira e puxador na rua (aliás, todo cachorro). Só que essa cachorra tem um problema de ansiedade com a própria coleira, fica nervosa quando alguém a pega pois já imagina que vai passear. Comigo não é problema, mas as pessoas tem medo da mordida dela (pequena, mas feroz e dolorida, com aqueles dentinhos de alfinete industrial). Dona Lílian sabia lidar com ela, também, mas aparentemente em certas situações achava OK levar a cachorra sem coleira.

Numa dessas levou ela sem coleira da nossa casa, na Hilário de Gouveia, até o Leme. Pela Avenida Atlântica. São dois quilômetros e meio - o que não parece muito pra gente, que não tem pata curta. Mas para a Olívia, é uma epopéia. Quando fiquei sabendo, logo dei jeito de me assegurar que ela teria carregado a cachorra no colo, e ela confirmou, talvez sentindo que era o que ela deveria me dizer pra me tranquilizar. Mas bastante tempo, talvez anos, depois eu soube que a Olívia caminhou um bom pedaço desse trajeto, no meio de milhares de turistas e transeuntes. Luiza até hoje morre de medo retroativo de nunca mais ver a cachorra, raptada na multidão de Copacabana.

Mais recentemente, um pouco antes de Dona Lílian ficar doente, presenciei uma cena chocante. 

Já morando num apartamento maior - para o qual nos mudamos logo no começo da pandemia - eu consegui um quarto para ter de escritório (já que oficialmente sou trabalhador remoto, em home office).  Para poder limpar o tal escritório Dona Lílian pedia às vezes que eu saísse, ou esperava que eu fizesse alguma pausa. Certo dia voltando de uma destas pausas testemunhei Dona Lílian segurando a Olívia pelo peito, com as duas mãos tipo a cena icônica do Rei Leão, de foram que a mais da metade da cachorra estava para fora da janela. Do quarto andar onde moramos. 

Tenho medo de altura e sinto mal-estar não só por mim mesmo, mas também quando vejo outros em situações assim. Quase desabando eu falei - "Do-na Lí-li-an pe-la-mor-de-de-us", assim pausadamente (foi como consegui falar) e ela, com maior naturalidade do mundo mas sabendo que foi pega fazendo algo que eu jamais aprovaria: sorriu, colocou a Olívia no chão e explicou.

"É pra ela poder olhar o movimento."

Depois de me recuperar expliquei pra ela não fazer mais isso, já meio sabendo que não ia adiantar. Me conformei com o fato de que devia estar fazendo algo parecido por todos estes anos e nada de ruim teria acontecido até então. Hoje, em retrospecto e sem o medo, acho que fez bem. Se divertiu, e Olívia pôde de fato olhar o movimento.

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3. A misteriosa Hora

Esta não testemunhei. Ainda na ReSaCa, mas já depois que eu saí, Dona Lílian além da faxina passava roupas. Acho que este trabalho a mais, creio que combinado e pago separadamente, foi parte do grande plano de renovação da qualidade de vida empreendido pelo mais novo e proativo membro da trupe. Creio que este causo seja relacionado ao enigmático problema do Direito acerca do usucapião de toalhas (que também é outra história).

Enfim - consta que certo dia, já um pouco tarde (Dona Lílian chegava cedo e saia tarde), passava roupas. E caiu a luz em Copacabana. Algo raro mas que, se bem me lembro, aconteceu com alguma frequência pelos idos de 2015 ou 2016, que deve ser quando se passa esta anedota.

Cai a luz, escuridão relativa, algum barulho na rua. Membros da ReSaCa que estão no apartamento são surpreendidos por Dona Lílian exasperada.

"Ai, meu Deus!"

"Que houve, Dona Lílian?!"

"Ai meu Deus, minha Nossa Senhora!"

"Que houve? O que aconteceu? A senhora está bem?"

"Ai meu Deus. É agora?"

E na pouca luz, fica óbvio que ela está ainda de pé, ao lado da tábua de passar roupa, mas com as mãos pra cima e, numa delas, segurando o ferro de passar roupa quase acima da cabeça.

"Dona Lílian, o que houve? É agora o quê?"

"É agora!?"

E passados este minuto, talvez segundos apenas, volta a energia elétrica. Dona Lílian exala -

"Ufa!" - e continua a passar a mesma peça de roupa como se nada tivesse acontecido.

Os membros da república não entendem nada. 

"O que foi isso, Dona Lílian?!"

"Isso o quê?"

"O que houve com a senhora agorinha mesmo?"

"Comigo?!"

"É, o que a senhora estava falando, 'é agora', o que foi isso?"

"Eu? Não falei nada não."

E não teve jeito de extrair dela a explicação.

Até hoje não sabemos o que era agora.

2 de junho de 2023

Projetos

A vida adulta é a antessala da morte. 

E no meio tempo, como um gordo que lê revistas antigas na sala de espera da nutricionista, a gente tenta se entreter com alguma coisa. Inventamos nossos próprios joguetes que chamamos, bastante literalmente, de 'passatempos'.  Por exemplo, contar o número de propagandas que fazem o gordo sofrer - sorvete, pannetone, trilha aventureira morro acima, etc.

Alguns passatempos são tão ambiciosos (ou tomam tanto tempo, ou custam tantos reais para comprar o material necessário) que chamamos de projetos

Alguns destes projetos cumprimos, num fim de semana ou feriadão ou férias. Mas outros, por motivo quase sempre inventado, deixamos eternamente em estase, como o tal gordo prometendo que vai começar a ir na academia.

Tenho vários exemplos de coisas não botei em prática - um filme sobre um investigador resolvendo um crime com a ajuda da entidade Vovó Cambinda, no estilo Rubem Fonseca (mas mal escrito, claro); programar um joguinho de gnomos roubando cubos de açúcar; etc,. 

Eu tive, por exemplo, o projeto de aproveitar o passeio diário com a Olívia (o Cachorro Raro(tm)) para juntar um lixo que encontro, aqui e ali, às vezes, no parque Guinle.

Não que o parque seja todo sujo - pelo contrário, mas a relativa falta de sujeira dá até mais vontade de juntar aquela guimba de cigarro mais perdida, ou aquele pedaço de sacola plástica desgarrado, perdido sobre um montinho de areia do parquinho das crianças como se fosse aquele gordo (aquele, da sala de espera) agora tornado beduíno, ou um extra no set auxiliar d'O Paciente Inglês ou outro filme de deserto que foi lançado na época em que a revista foi publicada.

 E o tempo passa de qualquer maneira mesmo sem que a gente o passatemporize. Só dá tempo de inventar umas palavras que não existem e torcer pra que ninguém estranhe e procure no google.

Enfim, essa ideia de limpar o parque exemplifica o motivo pelo qual esses projetos não se concretizam: a gente fica inventando o motivo. 

Neste caso estabeleci arbitrariamente que precisava do material correto - um pegador de lixo, uma haste com um botão que abre e fecha uma pinça, sabe? Como nunca comprei o tal pegador (óbvio) nunca juntei um mínimo pedaço de detrito no parque, exceto os produzidos ao vivo pela cachorra.

E o pouco lixo continua lá, como o gordo ainda esperando ser chamado para a consulta.

5 de outubro de 2021

Entrevista de Estágio

Muita coisa mudou desde que comecei a escrever esse blog - e poucas delas mudaram tanto quanto meu senso de humor. Mas não vou deletar nada. Vou deixar esses posts antigos aqui como monumentos, decadentes mas curiosos, que marcam qual era meu senso de humor em cada época.

Ainda assim, tem histórias que aconteceram há muito tempo e deixei de contar - então vou contar a anedota de antigamente com meu estilo de agora. Quem sabe o anacronismo estilístico traga alguma graça? Descobriremos juntos.

Há uns bons 15 anos eu era estagiário numa pequena agência de publicidade e recém pensava em estudar alguma outra coisa. Certamente nada envolvendo computação. Ao invés disso, por conta de terem me dito diversas vezes ao longo da adolescência que eu "escrevia bem" (o que eu e você, lendo isto, sabemos que era exagero) eu pensava em ser Poliglota, Intelectual. E me parecia que um jeito aceitável de ganhar um dinheiro era ser tradutor.

Um colega de faculdade era estagiário em algum órgão da Reitoria da universidade (sei lá, faz tempo, me dá um desconto) fazendo tradução. Ele ia viajar e precisava deixar o estágio por algum tempo. Porém, palavras dele - erodidas pelo tempo - "não queria largar". Era um bom negócio, dizia ele. Um dia por semana. Cento e cinquenta reais por mês. Uma combinação boa demais pra ser verdade (a Economia de estagiários de primeiro semestre de Publicidade pré-crise dos subprimes é diferente da atual). 

Desenhou-se um plano: ele me indicaria ao cargo, que eu ocuparia enquanto ele estava fora, e eu o cederia novamente se, ou quando, retornasse. Eu ganhava a experiência em tradução e uma grana, ele ganhava a segurança de retornar ao seu cômodo paraíso.

Falei com meu então chefe, no meu próprio estágio, com o qual eu tinha assumido um arranjo flexível - ele me chamava quando precisava, eu trabalhava e era pago por turno. Ele não gostou muito de saber que não poderia contar comigo nas sextas-feiras, mas eu fui à entrevista do novo estágio assim mesmo.

Cheguei lá e não era entrevista - eu fui apresentado a todo mundo, aqui é o fichário, ali é o banheiro, esse é o café bom, esse é o dos estagiários, etc. Era certeza. Aí, no fim do tour, a minha guia (pretensa chefe? Acho que não cheguei a descobrir) me disse - 

"Todo dia, no fim do turno, você assina ali a folha de presença".

Epa, espera aí, pensei. E falei alto, também, pois jovem o suficiente pra não saber ficar quieto. Eu pensei que o estágio era pra ser um dia por semana...? Não, é pra todos os dias, é claro. De onde foi que eu tirei a ideia de que era uma vez por semana? 

Felizmente, apesar de jovem eu não era tão burro, então acho que me desculpei e saí de finininho sem delatar o óbvio crime continuado de meu comparsa, digo, colega.  Mas não posso ter certeza. De qualquer forma, falhei na seleção de emprego mais fácil da história do Homo Sapiens gaúcho.

Noutro dia, voltando ao meu estágio normal, meu chefe me chamou e antes de eu poder confessar que tinha dado tudo errado (que certamente era minha intenção) ele me ofereceu um aumento. Foram esses poucos reais extras que eu investi em Bitcoin em 2009 e hoje me fazem o único brasileiro dono de uma ilha em cada oceano!

Mentira, gastei tudo em comida em almoços de R$4,50 no Café Cristal. E fui mais feliz do que qualquer bilionário que tem que ficar cuidando de ilha em tudo que é canto até hoje.

4 de outubro de 2021

A Perseverança - ou Expectativa sobre o Espírito Humano

Boa poesia, como boas piadas, não precisa de explicação. Não sou um bom poeta. 

A Perseverança é o resultado do assombro que senti ao assistir ao pouso da sonda Perseverance em Marte, em menor parte, mas também de uma conversa que tive com um amigo - qual seria a reação do astronauta que, no futuro, primeiro a encontrasse lá, parada, morta, sua missão cumprida (espero), num canto perdido de Marte?

Aproveitamos para imaginar o que sobraria do Espírito Humano que a lançou ao espaço naquele astronauta daqui a cem, mil, milhares de anos. A resposta que propomos é uma - você pode julgá-la lendo o poema abaixo.

Esse poema foi escrito em uma métrica chamada "esqueci os tipos de métrica que só decorei pras aulas de Literatura na escola, mas parece que dá pra recitar em voz alta". Lá vai!

A Perseverança

De areia e pedra uma colina alta 
é vista por um só instante
e pontuada, bem lá em cima,
pelo capacete de um astronauta. 
Ele enxerga, distante,             
o contorno de uma obra-prima.
Então anda (mesmo depois
de quatrocentos milhões
de quilômetros, mais dois)

com pressa. E com esforço alcança,       
coberta de vermelha poeira                 
que sua mão descobre                  
e revela - a Perseverança.
 E a mesma mão pausa
num momento de paz inteira.              
Contempla em silêncio esta instância
do espírito humano, esta causa
de assombro por ser tão nobre.
Obrigado! Aos seus anteriores,
que enfrentando gigantes rigores 
provaram ser ainda maiores.

Percorrida a trajetória
o astronauta trabalha e desmonta
aquele engenho de inteligência,          
pois precisa, já fez a conta,
mais das partes que de sua História.
E o que constrói com o bocado
desse símbolo da sua raça?
Um habitat, uma arma, um telhado
Para sua sobrevivência?
Não - sua gente prefere que faça
Nem barco, nem vela, nem leme,
que navega, que conduz, ou transcende,
mas uma boneca inflável que treme.

--

(A trilha sonora fará mais da metade do trabalho na adaptação cinematógrafica).

Poesia IV: Meus mIRC anos

Esta aqui está em draft desde 7 de Janeiro de 2015. O Eu começando um doutorado teve a intenção de um dia melhorá-la? Teve vergonha da qualidade poética? Teve bom gosto pra evitar postar mais uma paródia?

Seja o que for, ele tinha algo que o Eu de hoje (Dr. Eu, por obséquio) aparentemente não tenho. Lá vai!

--

Meus mIRC anos

Oh! que saudades que tenho
Da Internet antiga,
Da minha adolescência querida
de só alguns anos atrás!
Os bots, ops e aliases
Naquelas noites mirqueiras
Passávamos a noite inteira,
Em mais de quinze canais!

Como são belos os dias
De, já com experiência
Esperar com paciência
A meia noite chegar com ardor;
E monopolizar o telefone,
N'aquela internet discada
Tão lerda quando é usada
Ainda mais quando sábado for!

Que aurora? Que sol? Que vida?
Noites de mirc em demasia
Com o teclado aquela porcaria,
Que sobrou depois de tanto teclar!
Já com todas as vogais gastas,
a barra pro espaço se ia
(e o Shift criando teia)
E o enter, saiu do lugar!

Oh! Pessoas que eu não conhecia!
E mesmo assim, como era
Tão legal conversar com elas
Até chegar a manhã!
Ao contrário dos inaptos de agora,
Trovamos com muita perícia
e sem câmera, pura malícia
dos amigos até a irmã!

........

Oh! que saudades que tenho
Da internet antiga,
Da minha adolescência querida
de só alguns anos atrás!
Que rox, que rules, que awesome,
Naquelas noites mirqueiras
Passávamos a noite inteira,
Em mais de quinze canais!

2 de dezembro de 2019

Hábito

Um amigo adquiriu o hábito de chamar de "Burro!" cada amigo que comete um pequeno deslize.

Tudo muito divertido, enquanto aplicável aos companheiros de república com sentimentos de ferro (não, espera, péssima analogia - ih, já foi). Eis que pelo costume se perde as travas mentais e ele chegou a gritar com o chefe, quando esse fez qualquer coisa errada. Felizmente o chefe não ouviu direito, ou fez que não ouviu, ou é só burro mesmo.

Rubinho 2

Rubinho ficou mais famoso. Depois de ter sido proibido judicialmente de andar pelas galerias de Copacabana, e de ter sido liberado em tutela de urgência após protestos (com cartazes e tudo), finalmente foi oficialmente inocentado em decisão judicial.

Viva!

Que alívio. Sei que o que escrevi não influenciou em nada, mas me senti mal por ter dedurado a plaquinha do gato arisco com crianças. Afinal, toda a história aconteceu porque disseram que o Rubinho era um perigo. O único perigo era a gente nunca mais ir na galeria por causa do Rubinho.

Ainda descobri, com essa história toda, que o nome completo dele é Rubinho Correia.

19 de abril de 2017

Pigmons

Eu já tinha tomado banho e a Luíza gritou vai tomar banho. Não era xingamento, era ordem, porque agora a gente mora num apartamento que tem espaço pra zanzar, e eu zanzo às vezes enquanto ela tenta assistir Netflix. Aí ela manda eu ir tomar banho, lavar louça, levar o Shih Tzu no cromoterapeuta, etc. pra sair de perto.

Só que eu já tinha tomado banho e ela, enrolada no sofá com almofadas e uma coberta rosa, ainda não. Aí eu retruquei que ela que devia ir tomar banho, que rosa e enrolada ela parecia um Pigglypuff, uma mistura de Pig com Jigglypuff.

Aí ela ficou competitiva e começou a procurar um Pokémon pra transformar em Pig, mas não conhecia, de nome, nenhum. Recorreu à ajuda do concorrente: como é o nome daquele que era um ovinho? Aí eu falei: Togepi. Eu sabia que era fácil ela emendar um TogePig, mas pratico a guerra justa.

Só não lembrava que a Luíza além de não lembrar de Pokemón é terrível com trocadilho então tentou aplicar prontamente em aliteração: Pigpi.

Não tem nada demais, mas até hoje dou risada.

Rubinho

Outro gato de Copacabana é o Rubinho, fica numa loja de madeira, tinta, caixinhas, essas coisas. Fica lá, sentado no balcão. Já tinha ouvido falar (e muito) do Rubinho quando fui lá conferir e ele estava bem quieto, gordo e confiante. Na entrada da loja, tem uma placa 'cuidado - gato arisco com crianças'.

Aí uma menina que estava na fila de pagamento olhou pra ele. Ele olhou de volta, meio de lado, canto de olho. O dono da loja percebeu o interesse e esperou a pergunta, que ela fez mesmo: posso fazer carinho nele?

Olha..., disse, o Rubinho não gosta muito de criança, não. Ela considerou o risco de um arranhão por alguns segundos até o Rubinho dar uma daquelas chicotadas com o rabo que insinua perigo. Triste, pagou e saiu.

Ela tinha acabado de sair pela porta e o gato olhou pro dono,  como que esperando. O dono sorriu e fez um carinho de leve entre as orelhas do gato. Até hoje lembro da cena e me dá a impressão de que eles têm algum tipo de acordo. Toda vez que o Rubinho não arranha uma criança ganha um carinho.

12 de outubro de 2015

Tragédia

Os amigos almoçavam e conversavam - claro - sobre as tragédias da vida. Pra aguentar a sofreguidão e aridez do centro do Rio num dia semana, é preciso sempre se lembrar de quem é mais perdedor do que a gente. Ou que não estamos perdendo sozinhos, no mínimo.

Aí um deles conta a seguinte história: aquele nosso amigo foi com a namorada para a casa dos tios dela. Naqueles arranjos de última hora, ou sei lá, dormiram no sofá da sala. Sala bonita, chão de taco imperial que faz ambientalista chorar, sofá de camurça branca italiana, etc. No meio da noite, o amigo passa mal. Mas o sofá é apertado, não quer levantar e acordar a namorada (e quem sabe os anfitriões). Pode ser só um caso clássico de gases, né?

Não era. A tragédia - o sofá era branco, lembra? - aconteceu rápido e a namorada, pelo jeito já acostumada com esses acidentes do amado, foi acordada e em menos de vinte segundos já estava em modo de redução de danos. Com gente acordando pra cá, traz um pano de lá, alguém traz um remédio pro menino de acolá etc. o amigo dá um passo decidido em direção ao banheiro e o segundo ato da tragédia acontece ali, no meio da sala (o chão era de taco lindíssimo, lembra?).

Depois de uma temporada do amigo no banheiro e uma movimentação de toda viva alma na casa para resolver os problemas mais imediatos, ficou tudo acertado: vão dormir aqui, vai tomar esse remédio, usa esse calção aqui que um primo deixou quando veio de férias e acabou esquecendo, etc.

E completou a tragédia em três atos estragando esse calção.

Aí, terminada a história, os amigos que almoçavam riram. Mas o que contou a história percebeu que o outro não riu tanto. Porque? Respondeu, compadecido: não posso rir, acontece muito comigo.

O primeiro duvidou. O segundo botou o pé na cadeira, arremangou a calça e - claro - estava sem a meia do pé direito.

19 de junho de 2015

Sempre as mesmas

Preciso parar de contar sempre as mesmas histórias. 


Ninguém aguenta mais ouvir que a Luíza tem que fazer voltas em Copacabana porque não pode passar perto da Serzedelo Correia desde que saiu correndo sem pagar a dívida de aposta no dominó com os velhos da praça.

Protesto

"Polícia joga livro de Cálculo e dispersa multidão na reitoria da USP", página 10.

Páginas 11 a 58: futebol.

2 de maio de 2015

Seis graus de separação II

(2024-07-17 Só hoje, arrumando as postagens, percebi que escrevi esta história duas vezes. Re-titulei esta como a versão II. A versão I é de 2011, contemporânea aos fatos narrados. Este foi de memória)

Hoje o mundo é conectado e todo mundo já ouviu falar na teoria dos seis graus de separação. E quem não ouviu pode ir ali pesquisar no Google: se considerar um conhecido de um conhecido (seis vezes), você conhece todo mundo. Todo mundo mesmo, pode ser o Obama, um traficante de órgãos, um chinês cego e malabarista, por exemplo.

Quando morei na República da Sagrada Castidade morou com a gente um cara cuja situação era (ou era pra ser) passageira, de forma que dormia com ele a própria noiva. Ele procurou lugar pra morar por um tempo até combinar com a cunhada que eles, os três, dividiram um apartamento. Nos trâmites de procurar um apartamento maior, com os prazos de cá pra lá e de lá pra cá se cruzando, aconteceu que foi necessário a irmã da noiva dormir por uns meses lá na república, também.

No quarto compartilhado, dormíamos quatro (eram três camas e, variavelmente, de duas a cinco escovas de dente). No quarto individual, já dormiam ele e a noiva, de forma que a irmã da noiva se viu obrigada a dormir nos aposentos gerais. Só pra contextualizar, antes de adiantar que o namorado da irmã da noiva também se viu necessitado de dormir lá pelo mesmo período.

O leitor esperto já entendeu onde vamos chegar. O namorado da irmã da noiva do colega de apartamento tinha um irmão, que - claro - precisou ficar lá por uns tempos. Ele - claro - por uns dias precisou dar pouso a um amigo. A essa altura já não se sabia muito bem se existiam fronteiras de privacidade (muito antes do tal de Snowden confirmar), ainda mais quando o último elemento dessa cadeia toda teve o entrosamento de colocar música alta pra tocar na sala, depois de um dos moradores oficiais ter ido lá baixar o volume explicitamente. Como diz meu amigo que estava lá comigo na época: intimidade é uma coisa que o ser humano cria sob demanda.

Segundo a teoria dos seis graus de separação, o amigo do irmão do namorado da irmã da noiva do meu colega de apartamento poderia muito bem ter sido o Obama, um traficante de órgãos, ou um chinês cego e malabarista.

14 de abril de 2015

Rio de Janeiro I

Há muitos anos vim pela primeira vez ao Rio de Janeiro. Não vim para morar, mas para um congresso, com diversos colegas de laboratório. Aconteceram tantas desgraças que antes de voltar já nos reunimos para compilar uma lista de forma a não caírem todas no esquecimento.

Eis, aqui, a lista, até agora inédita - por motivo: ninguém se importa. Mas recordar é viver.

2009

Vários dos artigos que submetemos foram rebaixados ou não aceitos. Normal. O chato foi ver as (algumas) besteiras que foram. Não é inveja do tipo "eu poderia ter feito isso!", como quando se olha um quadro no museu. É indignação do tipo "eu não fiz isso porque é uma besteira completa!", como quando se olha um quadro no museu que foi pintado por um macaco.

Tive que plastificar minha identidade para poder entrar no avião. Como tudo num aeroporto, custou 10% do PIB. Já no Rio, alguns de nós não foram ver as principais atrações do evento porque simplesmente não encontraram. Não que o local seja um labirinto, ou que seja muito grande, mas é que a sinalização existente só tem explicação se as pessoas que a colocaram lá secretamente filmam os turistas perdidos para vender as imagens para os programas de TV ruins do mundo.

Dois de nossos colegas foram para lá com o objetivo específico de conhecer possíveis orientadores de mestrado. Problema: um deles foi apresentado pelo apelido que recebeu no trote o tempo todo. Algo nas linhas de "Esse é o Rosca, ele tá interessado em fazer mestrado contigo". Já o outro simplesmente não encontrou o orientador no evento.

Além de oportunidades, perdemos algumas coisas. No avião de ida, em restaurantes, no albergue, no evento, na rua, nos pontos turísticos, no avião de volta e num táxi, já de volta em Santa Maria. Entre as perdas: casaco de couro, celular, guarda-chuva, cartão de crédito, crachá do evento, fone de ouvido, cartão de memória da máquina fotográfica, aquela carteira de identidade plastificada em (suponho) plástico feito de ouro, e, por fim, as noções de higiene corporal. E não é para menos.

O quarto em que decidimos ficar, com três treliches, era menor do que o menor quarto que você já viu. Juro, tirei fotos e medições e tentei modelar o dito quarto em um programa de modelagem 3D e descobri que há algo de muito errado naquilo. Como cabemos, não sabemos.

Além disso, com os banheiros coletivos, alguns preferiram tomar banhos mais temporalmente espaçados. E espacialmente: um no Rio de Janeiro, outro só no Rio Grande do Sul. Como estávamos em oito, um nono hóspede foi destacado para a cama sobrante: um senhor muito parecido com o Gargamel, dos Smurfs. Esse é, óbvio, o título do livro autobiográfico que um dia escreverei: "Eu mais oito no Rio de Janeiro dormindo com o Gargamel".

O albergue, ou hostel, era legal. O problema foi escolher o menor quarto do universo. Outro problema foi que, na cozinha compartilhada, encontrou-se um brócolis ancião em uma panela esquecida. Carinhosamente, o Brócolis havia sido apelidado de Mumm-Rá.

Outro problema, que não destaco para não ser chamado de preconceituoso, foi o encontro de público gay que lá ocorreu durante nossa estadia. Uns vinte indivíduos dormindo no quarto ao lado do nosso, cuja parede que dava para o corredor era formada de tijolos de vidro translúcido. Esse foi o resumo da viagem para quem pediu a versão ultra-curta: teve um encontro gay no nosso albergue.

Uma bandeira de Israel e um relógio com o horário de Tel Aviv indicavam a origem israelita do hostel. Ora, tendo nosso querido companheiro judeu de laboratório viajando conosco, nos vimos privados de fazer as piadelas saudáveis que somos habituados a fazer no laboratório: "pede pizza de bacon com lombinho", "não quer deixar pra fazer sábado?". Qual é a graça de trazer o judeu junto nessas condições?

Preocupados com as finanças, decidimos explorar a cuisine exótica que não se encontra no interior do Rio Grande do Sul. A saber: estabelecimentos baratíssimos onde, imagine, não se vende ovo em conserva e sorvete seco com balão grudado no açúcar. No Rio de Janeiro, se alguém se interessa, o negócio é procurar a venda do Chinês mais próxima - e não se preocupe, haverá uma. Mas cuidado, pois o nosso Chinês próximo, por exemplo, não era muito bom no português: um colega pediu um pastel e recebeu, claro, um copo de açaí.

Um fator importantíssimo que marcou toda a nossa estadia foi a chuva onipresente. Choveu durante todos os segundos de todos os minutos que ficamos lá. Incrível. Choveu tanto que o mais cético de nós construiria uma arca para colocar animais aos pares caso ouvisse vozes do além. Tomamos banho de chuva, compramos guarda-chuvas inflacionados dos camelôs do Rio (já mencionei que dentre as coisas que perdemos estava meu guarda-chuva?), ficamos com os tênis molhados o tempo todo...

É claro que quando se faz uma viagem de férias o único dia de sol é aquele em que se vai embora. Mas fomos embora muito cedo da manhã, só deu tempo de saber que aquele era o dia em que acabava a chuva. Bônus: não chovia há muito tempo em nossa cidade e, quando chegamos aqui, na volta do Rio, a chuva começou instantaneamente. É o que dizem: o que acontece no Rio, fica no Rio. Exceto as DSTs, o histórico escolar, a ficha policial, as dívidas, a culpa na consciência e a chuva onipresente.

Aqueles de nós que foram corajosos o suficiente para tentar ir na festa do evento sob chuva tórrida acabaram indo parar na festa errada. Não fui e só posso dizer que o resultado não deve ter sido satisfatório, para combinar com o resto da viagem.

O resultado da chuva foi devastador. Ficando a cinco quadras da praia de Copacabana, não colocamos o pé na areia. Pagamos uma soma exorbitante por um tour que resultou em não ver absolutamente nada no Cristo Redentor (por causa da Neblina) e descobrir que o sambódromo é uma falácia (é uma viela pequena e feia). Ainda no tour, nos separamos em dois grupos para visitar o Pão de Açúcar e um deles não conseguiu fazer a visita. Cinco colegas decidiram ir no último dia de manhã (que fez sol, lembram?), antes de pegar o avião e, pra isso, marcaram a visita bem cedinho. É óbvio, o guia chegou muito atrasado, quando eles já deviam estar indo para o aeroporto, e com um carro de quatro lugares para levar cinco pessoas. Até agora não sei como conseguiram pegar o avião. Suponho que tenham construído uma arca e negligenciado os pares de animais.

Eu e um colega de laboratório tínhamos o avião marcado para a mesma manhã, mas mais cedo. Assim, decidimos fazer essa parte do tour na tarde anterior, com chuva e tudo. E sem guia. Pelo menos nós conseguimos fazer o passeio, o que nos leva a crer que a viagem não poderia ter sido pior se tivesse sido planejada para tal, já que nós dois, que fizemos o passeio pendurados numa caixinha de ferro e vidro muitos metros acima do mar, somos os únicos do grupo que tem medo de altura.

Fomos nós com uma máquina fotográfica de um colega emprestada e lá, com os bilhetes na mão, pensei "vamos tirar as fotos aqui enquanto nossos rostos não estão contorcidos de medo". Prestes a entrar no bondinho, tentei tirar uma foto do colega. A máquina estava em modo vídeo.
Botei para o modo foto e tirei uma foto dos meus pés, para ajustar o flash. A máquina estragou logo depois. Resultado da visita ao Pão de Açúcar: um vídeo da nuca do meu colega e uma foto, escura, dos meus pés. Sem contar que esse colega perdeu o ticket de embarque no bondinho e, se não fosse um gaúcho que trabalha num café no topo do morro que descia conosco, teria que descer pela escada.

A melhor parte da viagem teria sido voltar pra casa, se não fosse meu companheiro de viagem me acordado a cada quinze minutos gritando 'o avião vai cair!', em vista do meu já mencionado problema de medo de altura. O companheiro em questão, claro, sendo meu orientador no laboratório.

10 de abril de 2014

Epitáfios honestos

"Durou mais do que a fortuna da família."

"Tudo que foi dito sobre ele é falso, incluindo esta frase. Adorava paradoxos."

"Aceitou seu lugar no mundo: um inconformado eterno."

"Veio ao mundo da mesma forma como, previsivelmente, saiu: sem dentes e chorando."

"Nasceu, cresceu, reproduziu e morreu, mais ou menos nessa ordem."

"Não mais incompetente que a média."

2 de abril de 2014

Leão

Tem um gato que passa as noites numa loja, aqui em Copacabana. Fecha a loja, baixam uma grade (que tem uma tela de segurança pra proteger e impedir o gato de sair) e deixam o gato lá. Acostumei há muito tempo a passar por ali assoviando, pois o gato vem até a grade pra receber carinho. Uma noite dessas passou uma senhora, com sacolas de mercado e me disse 'o nome dele é Leão'. Não sei se ela sabia mesmo ou se só chutou, mas como o gato é amarelo assumi que era um nome razoável. Chamo ele de Leão até hoje.

-

Estava andando na rua a passos largos, sem pressa e só pelo costume de andar apressado, e ultrapassei um grupo de turistas. Eles conversavam entre si, gritavam, descontraídos.

Assim que eu passei por eles estava em frente à loja do Leão. Parei, assoviei e lá veio ele, saltitante. Os gringos acharam o máximo. Não sei bem de onde vinham, mas expressaram surpresa em no mínimo umas doze línguas diferentes.

Depois de uns sessenta segundos de observação e suspiros por parte dos turistas, fizeram um daqueles momentos raros de silêncio de grupo. Bem nessa hora, virei e disse:

- O nome dele é Leão.

E saí noite afora, deixando os turistas a mimosear o Leão, seguro de que pra sempre se lembrarão de mim em diversas partes do mundo como algum tipo de Mestre das Bestas de Copacabana.

16 de março de 2014

O clube da vingança

- Bem vindos à reunião semanal do Clube da Vingança. Antes de começarmos...
- Eu quero fazer um discurso!
- Não, agora não. Só depois da janta.
- Por que não?
- Porque é contra as regras do Clube. A essa altura você realmente já devia saber disso.

Todos riram. Humilhado, jurou destruí-los.

Anos depois, enquanto revelava a todos (no clímax dramático) que tinha sido, secretamente, um traidor e o responsável pela decadência do Clube, concordaram que se tratava de uma ótima exposição e o elegeram presidente em votação unânime entre os poucos sobreviventes.


26 de fevereiro de 2014

Poesia III: O eMORCEGO

A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
na Internet

3 de fevereiro de 2014

Mensageiro

Sentado na beira extrema do trono, o Imperador tamborilava os dedos na perna. A mensagem chegaria a qualquer momento.

Quando as portas do salão se abriram, o Imperador desceu tão rápido os degraus que elevavam o trono que quase tropeçou no próprio manto, o que com certeza significaria o fim abrupto do seu governo por motivo: pescoço quebrado.

Entrando no salão, dois guardas imperiais carregavam, um de cada lado, um homem mais morto do que vivo. Um olho completamente fechado, coberto de sangue, alguns pedaços enegrecidos (talvez queimados?) e uma perna numa posição impossível.

- Ele está vivo? - perguntou o Imperador, disparando na direção dos recém chegados enquanto todos os nobres, serviçais e outros presentes abriam passagem - Está morto? Relatou a mensagem a alguém!? 

- Não, majestade. Está vivo, mas ... - disse o guarda, interrompido pelos berros do Imperador : acordem este homem! 

O médico da corte foi chamado enquanto o Imperador já chacoalhava o mensageiro, como que tentando arrancar a mensagem à força. Gritava perguntas para o quase-morto: qual é a mensagem? A batalha foi vencida? Os bárbaros recuam? Meu filho está vivo?

O mensageiro por fim foi despertado (e só muito pouco) por uma combinação de tratamento médico, sentido de urgência e balde d'água. 

O silêncio era absoluto. Do mais influente dos nobres ao mais humilde dos camponeses, o destino de todos dependia do conteúdo daquela mensagem. O médico aproximou o ouvido da boca do mensageiro, que sussurrou:

- Mensagem ao Imperador - tosse, sangue -, de seu filho, general e herdeiro...

- Sim!? Sim!?

- Mas primeiro - mais tosse - uma palavra de nossos patrocinadores...

E morreu. E tudo que sobrou do Império, arrastado pra fora da História pela guerra, fome, praga e sofrimento humano, foi o sentimento de que nada de bom pode sair dessas propagandas obrigatórias no começo dos vídeos do YouTube.

15 de outubro de 2013

O Grande Khan

Encontrava-se no leito de morte o Grande Khan. Lá, deitado, invocou o seu direito ancestral de líder moribundo: ter todos os últimos desejos satisfeitos.


- Pirueta.
- Quê? - o conselheiro, com o ouvido quase colado à barba trançada do Grande Khan, queria saber se ouviu direito - Pode repetir?
- Quero que façam uma graça qualquer. Não precisa ser uma pirueta.
- Uma graça? Quem?
- Qualquer graça, oras. Alguém faz, todo mundo, não me importa.

Ninguém questionou, é o direito do líder. Estranho, mas direito. Também fazia parte dos costumes ancestrais, afinal, que o líder deixasse toda sua herança para alguém próximo, na hora da sua morte. O que é uma graça por um império?

Eis que uma verdadeira e literal horda de guerreiros realizou as mais diversas proezas artísticas e pitorescas buscando a aprovação derradeira do Grande Khan. Imitações, música, demonstrações de habilidade. Um dos filhos do Grande Khan, que também era seu general, capturou e decapitou setecentos inimigos. Um dos guerreiros demonstrou como se corta um cavalo ao meio. Outro, ateou fogo ao próprio corpo e, ainda em chamas, acertou uma flechada em uma águia em pleno voo.

Então, depois de diversos dias agonizando entre risadas e aplausos, o Grande Khan morreu apontando como seu legítimo sucessor e herdeiro o primeiro que de fato fez uma pirueta.

7 de outubro de 2013

A arte de Refutar o Insulto

Estava eu, Doutor Von Barr, a expôr minhas colocações no simpósio sobre atividades de listagem do qual participei, exatamente no ponto do crítico de minha explanação - a história da listagem com caracteres romanos sans serif em corpo 12 ou menor, quando da necessidade de listar itens com marcação singular porém não exótica - quando um membro da platéia, indubitavelmente um perfeito filho da puta, disse, não tão baixo que não pudesse ser ouvido e não tão baixo a ponto de passar despercebido por transeuntes distantes até dez quarteirões dali:
- Filho da puta!

Ao que respondi, com toda a calma que se permite ao ver dirigido tamanho impropério a sua pessoa:

- Quê?

A sagacidade da minha resposta surtiu efeito e o meu interlocutor logo respondeu, um tanto quanto inesperadamente:

- Eu disse "filho da puta".

Para propósitos de simplificação do colóquio, coloco apenas o discurso que se trata, alternadamente, das minhas respostas que levaram ao desenvolvimento dessa nova ciência, arte, tecnologia ou moda previamente exposta:

- Pois, ora, se sou acho que não é bem minha culpa, certo?

- Você só fala merda.

- Creio que por meio da boa educação, respondendo a este insulto com toda a graça - neste momento agarrei meus proeminentes testículos0 e chacoalhei-os furiosamente - refuto sua afirmação.

- Você é um canalha.

A este passo ficava deveras nervoso, já de antemão tendo o conhecimento que meu
ennemi estava nessa por questão pessoal e o ar estava ficando rarefeito.

- E Vossa Senhoria não qualifica-se no mesmo dito grupo, intrometendo-se em minha precisa e já necessitada de expansão temporal explanação? Posso perguntar qual a razão da intromissão? - murmurei ainda "exceto vossa viadice aguda?".

- Você expõe idéias não provadas que vão contra minhas teorias, seu imbecil.

- Sim.

Aqui cabe um comentário: esta resposta cala qualquer um que, afirmando algo que é comprovadamente verdade, espera uma resposta discordante para conseguir refutar um argumento facilmente.

Meu interlocutor ficou sem ter o que dizer.

- Terminaste? - eu disse.

- ... vais me pagar caro!

- Obviamente, em respeito a vossa formação acadêmica, pagaria por vós mais do que o preço justo, o que caracterizaria qualquer valor positivo.

Toda a platéia me apladiu em pé e meu interlocutor desafiante foi jogado aos crocodilos, de modo que tive vitória plena e pude viver até os 80 anos para escrever tanto este texto como meu livro sobre a Listagem Moderna, entitulado pelo primeiro filho do segundo casamento do meu primeiro filho, "Amor, a Primeira Lista".

21 de maio de 2013

Alugando um apartamento no Rio de Janeiro

- Oi, eu estou ligando pra saber de um apartamento anunciado no site...
- Ah, esse não tá mais vago, não.
- Como assim? Eu nem disse qual -
- Esse também não.
- Ahn?
- Nenhum do site, senhor. Foram todos alugados. Tem um aqui que acabou de entrar e o menino não botou no site, fica na mesma área.
- Que área?
- Nessa área aí que o senhor quer.
- Tijuca?
- É. Mas é pior.
- Pior?
- O apartamento, é pior. Feio, com mofo. E é mais caro.
- É pior e mais caro?
- É. Só um momento - ih, menino, nem sabe. Foi alugado. Tem outro aqui, mas é ainda pior e mais caro.
- Poxa. É muito ruim?
- É. E não entregamos chave pra visita.
- Como assim?
- Pra visitar o apartamento tem que ser no dia marcado, o corretor vai estar lá mostrando pra umas vinte pessoas.
- Tem tantos interessados assim?
- Agora já são trinta. Até o dia devem ser duzentos.
- Que dia é a visita?
- Tem duas vezes por semana, das catorze até as quinze horas.
- Só no meio da tarde?
- É. Quarta ou sexta, o dia que ficar melhor pro senhor.
- Quarta...
- Então não tem mais quarta. Só sexta.
- Poxa. Não como fazer na primeira hora da manhã? Ou última da tarde?
- Tem, senhor, tem como fazer sim. Mas não vamos. O senhor tem fiador?
- Ah, é só com fiador? Não tem seguro-fiança? Depósito adiantado?
- Não, só fiador. O fiador tem que comprovar a renda sete vezes maior que o aluguel, ser casado, católico e possuir três ou mais imóveis no Rio de Janeiro.
- Nossa.. tá difícil, né?
- Se não quiser tem quem queira, senhor. Imagina na copa.

28 de março de 2013

Sinal de vida

Um professor um dia me contou um causo, da época em que ele mesmo era aluno. Talvez eu mude alguns detalhes, não lembro com total clareza. Mas o grosso da história é esse mesmo, e parece que é verídica.

Meu professor, então aluno, fazia engenharia e - em meio aos Cálculos - decidiu que precisava adiantar umas matérias. Conversando com os veteranos descobriu que um certo professor, que ministraria duas disciplinas naquele semestre, tinha fama de passar todo mundo. Todo mundo mesmo.

Matriculou-se em ambas as matérias e, se bem lembro, foi na primeira aula da primeira delas. Ouviu do próprio professor: "não quer, não vem. Eu passo todo mundo". E decidiu que não queria, e não iria.

Esperava passar. Fim do semestre, chegam as notas. Passou, em uma. Na outra, rodou. Ficou indignado (tema para debate: com razão?). Foi à sala do tal professor e confrontou - "Como me rodou na matéria, se me disse que passava todo mundo?".

"Veja bem", respondeu o professor, "fui forçado. Várias pessoas nunca apareceram. Quem tinha alguma presença, passou. Perguntei aos alunos se conheciam os faltantes, todos os que eram conhecidos de alguém passaram. Quem nunca foi e não era conhecido por ninguém, tive que rodar".

O motivo no final das contas foi o seguinte: a reitoria estava de olho. Tinha que tomar cuidado a partir de agora. Aconteceu que no semestre anterior um aluno morreu ainda bem no começo da matéria e passou com oito.

Então era isso, agora não passava mais literalmente todo mundo, havia um critério. Precisava no mínimo dar sinal de vida.

14 de março de 2013

Pedindo Pizza II

- Quantos sabores na pizza grande?
- Até quatro. Aqui está o cardápio.

Discutimos ligeiramente sobre as opções e (estudantes em vida de república) escolhemos os sabores que implicam em maior quantidade de comida pelo mesmo preço. Só haviam três dignos de nota: calabresa, portuguesa e romana. Decidimos o seguinte:
- Queremos a pizza só com três sabores, metade calabresa, um quarto portuguesa e um quarto romana.

A atendente ficou momentaneamente confusa.
- Ahn... como?
- Em vez de quatro sabores, queremos portuguesa, romana e uma metade inteira calabresa.
- Não dá.

Estranhamos a resposta negativa absoluta.
- Como assim?
- Não dá, a pizza deve ter dois sabores ou quatro, não fazemos com três.
- Mas... - um de nós começa, já pretendendo argumentar, quando outro tem uma boa ideia e o interrompe.
- Calma. Ok, - diz para a atendente - então anota aí: calabresa.
- Calabreeeeesa... - repeta ela, vagarosamente, enquanto anota.
- Portuguesa.
- Portugueeeeesa... - ainda anotando.
- Calabresa. - o 'de novo' ficou implícito. Trocamos olhares silenciosos entre nós. Expectativa: ela vai perceber o plano?
- Calabreeeesa... - anota ela, alheia, e nosso encarregado completa o pedido.
- E romana.
- Romana. Ok. Podem aguardar, fica pronta em quinze minutos.

O cozinheiro deve ter estranhado a repetição de sabor, mas ordens são ordens: quando a pizza chegou, constatamos que os dois quartos calabresa não compunham uma metade contígua. Estavam dispostos opostamente.

Exatamente como pedimos.

25 de janeiro de 2013

Sósias

Cena externa. Piscina. HOMEM gordo, meia idade, descansando. SECRETÁRIO aproxima-se com agenda nas mãos.
SECRETÁRIO: Senhor, vim lembrá-lo do compromisso às quatorze horas.
HOMEM: - visivelmente incomodado - Ai, saco. De que adianta ser investidor milionário se eu tenho que ficar me incomodando o tempo todo? O que é esse compromisso, é alguma reunião?
SECRETÁRIO: É um discurso de formatura para os universitários da...
HOMEM: - interrompendo - Ah, nem pensar. Chame o sósia. É pra isso que eu o contratei.
SECRETÁRIO: Como assim, senhor? O senhor é o sósia.

Câmera abre o plano, revelando um OUTRO HOMEM, idêntico ao primeiro, dormindo em uma cadeira de praia.
HOMEM: - confuso - É mesmo? Eu lembro distintamente de ser um investidor rico.
SECRETÁRIO: Não é o caso, senhor. Devo confirmar o compromisso?
HOMEM: Não, espera aí. Se eu sou o sósia, quem é aquele cara?

Câmera abre novamente o plano, revelando um TERCEIRO HOMEM, idêntico aos demais, vestido em traje social completo, segurando maleta.
TERCEIRO HOMEM: - entusiasmado - Estou pronto para o trabalho, senhor!
SECRETÁRIO:  - para o TERCEIRO HOMEM - Quem é você?
TERCEIRO HOMEM: Sou o novo sósia.
SECRETÁRIO: Como assim? Quem lhe contratou?
TERCEIRO HOMEM: Ué, ele - apontando para OUTRO HOMEM.

OUTRO HOMEM: - acordando - ahn? Eu? Preciso ir a algum compromisso?
SECRETÁRIO: Não, senhor, o seu novo sósia se encarregará disso.
OUTRO HOMEM: - confuso - Como assim? Há um novo sósia? Fui demitido?
SECRETÁRIO: Demitido? O senhor é o sósia?
HOMEM: Espera, então eu realmente sou um investido rico?
SECRETÁRIO: - mais confuso - Você contratou esse homem? - referindo-se ao TERCEIRO HOMEM.
HOMEM: Acho que não.
SECRETÁRIO: Então você deve ser o sósia.

Câmera abre o plano, revelando um QUARTO HOMEM, idêntico aos demais, com aparência jovial, em trajes mais simples, segurando folhas de papel.
QUARTO HOMEM: É aqui que entrego o currículo para o cargo de sósia?
OUTRO HOMEM: Se parece muito comigo. Está contratado. Ele - aponta para HOMEM - vai acertar o detalhes.
SECRETÁRIO: Quem é esse homem? Quem o chamou aqui?
QUARTO HOMEM: Segundo o anúncio, sou um investido rico. - deitando em cadeira de praia.
TERCEIRO HOMEM: Eu sou um investidor rico.
OUTRO HOMEM: Eu sou tão rico que já estou dormindo. - vira para o lado e dorme.
SECRETÁRIO: - assolado - Eu não aguento mais esse emprego. Isso está acabando comigo.
HOMEM: Que é isso, homem. Acalme-se. Você não acabou de tirar férias? Eu não havia contratado um sósia para você?

Câmera abre para revelar um ÚLTIMO HOMEM, idêntico ao SECRETÁRIO, em uma cadeira de praia.
ÚLTIMO HOMEM: - acordando - Eu sou o secretário? Achei que eu era o investidor rico.

23 de outubro de 2012

Mais d'O Mundo dos Negócios

- Ok, pessoal, o tempo acabou. Larguem as canetas. Larguem - Marcos, largue a caneta. Isso, vamos lá, passem os papéis pra cá.

Recolhe todos os papéis. Os funcionários trocam olhares, tamborilam os dedos na mesa, forçam a língua contra o interior da bochecha. Muito nervosismo no ar.

- Então vamos lá, vamos ver o que a equipe tem a dizer. E a primeira sugestão é... "von"- não, "vender", isso, acho que é "vender", que letra horrível! Não é a toa que os clientes tem reclamado de  que não conseguem entender as ordens de compra emitidas. Deixe-me ver, "vender min-es"? "Menes"? Ah sim, "menos". Quê? - ajeita o óculos, traz o papel para mais perto do rosto - " Vender menos"? Quem foi que escreveu isso?

-Ah, senhor, acho que o anonimato é parte do exercício, senhor. Quer dizer, acho que -

- Cale a boca, Marcos. Eu sei. Eu só quero saber quem é o gênio que acha que 'vender menos' é uma opinião válida de melhoramento para a produtividade da empresa. Se pelo menos estivessémos falando de lucro a frase faria sentido, apesar de ser exatamente o contrário do que a lógica indica como o óbvio!

- Ah, veja bem senhor, foram só alguns minutos pra escrever, talvez a frase fosse mais longa, não tenha dado tempo de  -

- Marcos, calado! - a tensão na sala parece diminuir entre os demais empregados conforme Marcos se torna o centro das atenções do chefe, agora com suor na testa apesar do ar condicionado ligado no máximo - foram três minutos, acho que é tempo suficiente para acabar uma sentença de mais de três palavras!

- Desculpe, senhor. Tem razão, senhor. Eu só acho que muitos aqui não escrevem à mão há muito tempo, sabe como é, o computador -

- Chega, Marcos, chega. Vou fingir que não sei que foi você quem escreveu isso e vou lhe dar um chance - só uma chance! - de dar outra sugestão, agora, que melhore a produtividade da empresa. Vamos lá, trinta segundos. Vamos, estou contando, vinte e cinco, vinte e quatro, é bom que seja uma idéia útil, se não boto você no olho da rua! Vinte, dezenove -

- Caligrafia!

- ... o quê?

- Aulas de caligrafia para toda a equipe!

E foi assim que os clientes pararam de reclamar, a empresa resolveu o seu único problema de comunicação e Marcos foi continuamente promovido. Tornou-se presidente da empresa no final do mesmo ano apesar de ter furado a entrada na tal reunião, sendo apenas um office-boy de outra empresa sediada no mesmo prédio.

19 de agosto de 2012

Entrevista II

- Devo dizer que seu currículo é impressionante.
- Obrigado.
- Quero dizer, não apenas seu currículo. Suas referências são fantásticas. Bom demais para ser verdade.
- Obrigado. É verdade.
- Sei que é verdade, é só uma expressão, não me leve a mal. O que quero dizer é que você é o candidato perfeito, no momento exato em que precisamos. Aceita um café?
- Aceito, obrigado.
- Como eu ia dizendo, parece que você jamais comete erros. É o que precisamos. O momento é crítico, o menor erro pode levar o grupo ao chão. Precisamos de alguém perfeito, absolutamente infalível e...
- Hum.
- Desculpe, você colocou sal no próprio café?
- ... não.
- Mas... esse é o saleiro.
- Ah, sim, sal. Claro. Botei. Gosto, prefiro sal. - um longo gole.
- ... certo. Enfim, é meu prazer convidá-lo a juntar-se a nós como gerente de operações internacionais!
- Obrigado, obrigado. O prazer é meu.
Aperto de mãos.

Você está aí achando que isso ia dar em desgraça, mas a empresa prosperou como nunca. As ações subiram, os investidores lucraram, os empregados receberam generosos bônus e o capitalismo enfim resolveu o problema da pobreza no mundo. Não, brincadeira, duas semanas depois a empresa foi à falência e os sócios - quase todos - se suicidaram. Acontece que o tal candidato baixou um currículo da internet e era semi-analfabeto, conseguiu roubar muito pouco e fugiu para uma ilha deserta com um homossexual.

14 de agosto de 2012

Entrevista

Diz um amigo que um amigo de um amigo seu (portanto é um disse-que-disse) participou de entrevista de emprego. Ofereceram a ele as seguintes opções de 'pessoa que levaria para uma ilha deserta': um engenheiro, um médico, um padre e um homossexual (assim mesmo, sem profissão, a profissão dele é ser homossexual). Ele escolheu o médico, por motivos práticos, e não foi chamado pra trabalhar, por ser homofóbico.

6 de agosto de 2012

Uma boa história com um péssimo título

- Você devia juntar todos esses causos e fazer um livro.
- Eu fiz. Digo, não contei? Tô escrevendo um livro.
- Qual?
- "Uma boa história com um péssimo título".
- Legal. Bom título.
- Obrigado.
- Sabe o que eu concluo disso? Deve ser uma péssima história.
- É, são vários diálogos anônimos, sem cenário, sem continuidade e sem descrição dos envolvidos. Quando dá coloco uma ou outra auto-referência, pra dar ilusão de profundidade.

1 de agosto de 2012

Listas II

A vida é impossível sem as listas. Alguns fazem somente listas mentais, ou até mesmo virtuais, online, mas essas nem de longe são tão eficientes, confiáves ou poluentes como as físicas, no bom e velho papel. Destruo uma pequena floresta por ano só anotando o que tenho que fazer no dia seguinte.

Às vezes anoto 'acordar, trabalhar, dormir' em uma folha A4, só na esperança de que essa folha-a-mais agrave o efeito estufa. Porque deus me livre de ter na consciência que não fiz nada para impedir que os mendigos morram de frio.

27 de julho de 2012

Tarefas Domésticas

Levando o lixo pra baixo, Luíza não sabe se papel higiênico vai no reciclável. Perguntei "é seco ou molhado?". Ela respondeu: "depende".

Custo Brasil

Os melhores perfumes vêm nos menores frascos, mas o frete pro Brasil custa no mínimo 80 dólares.

Política

Eis minha proposta: legalizar a venda de maconha mas criminalizar o uso, exceto em caso de estupro.

9 de junho de 2012

Histórias

Ser brasileiro e estudar História é chato, nunca se sabe pra quem torcer.

8 de março de 2012

A Incrível Vida na Cidade Grande

Viveu a vida toda numa cidade de interior, uma cidadezinha bem pequena, bem previsível e pacata por inteiro. Conhecia todos os vizinhos e participava de um grupo de baralho mais antigo que a TV em cores, esse tipo de coisa. De repente, por sei lá qual guinada do destino, se viu preparando as malas pra passar um bom tempo na Cidade Grande.

- Vão te roubar tudo! - foi a primeira coisa que diversas de suas amigas também velhinhas também do interior disseram. Vão te enganar, cuidado com o golpe do bilhete, vê se não cai na história de quem pede ajuda pra remédio, pra passagem. "Lá não é que nem aqui" disse, provavelmente, a amiga com a qual tentou arranjar casório entre os herdeiros, "onde todo mundo se conhece, vai todo mundo perceber que veio de fora".

Chegou na cidade grande amedrontada, portando carteira falsa e escondendo os documentos na meia, dividindo o dinheiro entre os vários bolsos e outras técnicas caipiras de lidar com o perigo. Chegou a pedir pro neto botar um GPS - um "aparelhinho de rastrear", na verdade - na mala, caso a roubalheira começasse já na rodoviária. O guri jogou um aparelho qualquer quebrado lá dentro só pra apaziguar a velha. "Consegue ver onde tá minha mala?", ela pediu pra fazer o teste. "Ainda não, vó, só vou ligar quando a senhora for, pra economizar a bateria".

E foi desnecessário, mesmo. A rodoviária não tinha batedor de carteiras, ninguém tentou vender monumento histórico, ninguém se ofereceu pra carregar as malas e com elas sair correndo. O primeiro dia acabou sem desastres. O segundo, a primeira semana, também. Já mandou avisar as comadres que estava se virando e que talvez a Cidade Grande nem fosse tudo aquilo. Na segunda semana já se aventurou a ir ao mercado. Depois, ao shopping e "Manda avisar todo mundo no clube que eu já vou ao cinema sozinha!". Não demorou pra descobrir onde pega o ônibus e em pouco tempo era ela que dava informações para os mais desinformados. "Sim, meu filho, é seguindo reto aqui e não esqueça de dobrar quando chegar na avenida do parque!". 

Eis que um dia perdeu a hora e precisou pegar um ônibus num lugar desconhecido - sua linha costumeira cessava cedo no fim de semana. Já era escuro. As pessoas já não pareciam tão bem intencionadas, mas ela se recusou a ceder ao antigo medo. Pegou o primeiro ônibus, "Esse pára perto do shopping?". Parava, sim. Olha só, já estou a caminho de casa.

Mas eis que embarca um rapaz encapuzado, de fones de ouvido, caminhado gingado. A própria imagem do meliante, o tipo de rapaz que na sua cidade todo mundo comenta que namora com aquela guria que sempre soube que não era boa coisa. Sentou ao lado dela, com vários outros bancos ainda disponíveis. Calma, não há de ser nada. Tentou desligar, apreciar a viagem, prestar atenção no caminho pra não perder o ponto; e conseguiu. Distraída, lhe ocorreu em checar as horas -  e foi aí que percebeu o furto.

Seu relógio de pulso sumira. Não estava mais lá, ainda podia sentir seu peso, o aperto da pulseira, mas ele não estava mais lá. Olhou assustada para o rapaz sentado ao seu lado e logo se arrependeu do movimento brusco. Desviou o olhar, "Ai meu Deus, e agora, se eu reclamo é capaz de me bater, esse pessoal rouba tudo pra comprar droga, me avisaram que era assim aqui na Cidade Grande". Tinha quase certeza que o vira colocar a mão no bolso do casaco abruptamente, com certeza escondendo algo. O que mais lhe ocupava os pensamentos, no entanto, não era a falta do relógio. Tinha sido caro, mas compra-se outro...

O problema era o orgulho. Como poderia voltar pra casa e encarar toda aquela gente que já a considerava uma vencedora destemida por não ser uma vítima da metrópole? Se pelo menos não tivesse contado vantagem de conseguir ir ao cinema sozinha... Não, não era só isso. O problema era que se sentira bem tomando conta de si mesma pela primeira vez na vida, talvez, e queria - precisava - continuar acreditando que era capaz de fazer isso pra sempre.

E aí tomou uma daquelas decisões que moldam a vida do sujeito. Uma daquelas que entram no resumo da biografia e acaba sendo utilizada para descrever o caráter do indivíduo para o resto de sua vida e além: decidiu que não seria a vítima. 

Abriu a bolsa com movimentos mínimos. Tirou lá de dentro a escova de cabelo, segurando-a do modo inverso. Encostou o cabo nas costelas do rapaz com uma violência medida e graciosa. Ele levantou o braço e tentou ver o que era aquilo que lhe pressionava, apesar da ordem instantânea da velhinha: "Olha pra frente!". Ele o fez, confuso, sem ter visto nada pois, mesmo sem querer, ela cobrira a visão dele com o braço oposto. Um movimento de assassino profissional, feito no puro improviso. 

Já assustado e confuso, o rapaz ouviu as ordens seguintes: "Coloca o relógio na bolsa e desce no próximo ponto". Exclamou um quê, mas uma pontada mais forte calculada nas costelas o calou. Ela sentiu o rapaz movendo as mãos dentro dos bolsos, lhe alcançou a bolsa aberta, "Anda, vai logo!". Ele depositou o relógio lá dentro e ativou o sinal de parada. Saiu sem olhar pra trás e desceu do ônibus quando a porta abriu.

A velha quase não conseguia segurar a felicidade. Queria gritar, "Sou uma heróina! Posso cuidar de mim mesma! Vou ser o motivo de orgulho e assunto da conversa até a o final da quaresma!". Desnecessário dizer que não foi com o mesmo espírito positivo que lidou com o fato de encontrar em sua bolsa um relógio colorido, metálico e grande, de estilo hip-hop - bem diferente do seu, fino, leve, bem acabado e ainda bem guardado dentro da mala, no seu quarto, ao lado do falso GPS.


11 de janeiro de 2012

Roteiro II

Um malfeitor careca, de bigodes ou com algum traço físico repugnante qualquer treina um macaco, cachorro, porco, gato, golfinho, foca ou gambá para praticar crimes. O animal, no entanto, é de boa natureza e foge do dono depois de uma sequência de maus tratos, sendo então encontrado por uma criança pré-adolescente norte-americana que enfrenta problemas pessoais na escola, com o divórcio dos pais ou com a rejeição do irmão mais velho.

Caoticamente, a princípio, mas depois naturalmente, os dois vivem diversas aventuras nas quais as habilidades criminais do macaco, cachorro, porco, gato, golfinho, foca ou gambá e a participação de um amigo coadjuvante são essenciais para o sucesso. Quando a criança protagonista aprende finalmente a lidar com seus problemas, tornando-se uma pessoa bem resolvida e mentalmente saudável, surge novamente o vilão malfeitor.

Ele então rapta o macaco, cachorro, porco, gato, golfinho, foca ou gambá e o força a praticar novos crimes, mas o animal se nega (agora mais decididamente) e humoristicamente sabota o roubo; causando no dono várias contusões e queimaduras leves (além da aderência de penas em oléo que cobre o corpo do bandido). Não demora até que a polícia consiga prendê-lo (o malfeitor). O animal é então encontrado pela criança protagonista que entrementes organizara uma busca pela vizinhança com tochas e lanternas e mutirão de pessoas gritando "macaco" (ou "cachorro", "porco", "gato", "golfinho", "foca", "gambá") - busca que se prova inútil quando uma súbita lembrança de um ensinamento involuntário do animal faz a criança encontrá-lo instantaneamente.

De alguma forma o vilão, mesmo tendo sido pego, consegue reivindicar legalmente a posse do animal. Em meio ao julgamento de assassinatos, latrocínios, incêndios criminosos e etc. é julgado o caso da posse do macaco, cachorro, porco, gato, golfinho, foca ou gambá. Invariavelmente o juiz decide que o animal será chamado pelas duas partes concorrentes e que aquele que atraí-lo será seu legítimo dono. O vilão utiliza pasta de amendoim (independente do tipo de animal em questão, todos adoram pasta de amendoim) para sabotar o processo, mas mesmo assim o amor vence e a criança comemora a posse do amiguinho com os pais ausentes agora participantes, o irmão mais velho que agora é figura exemplo, o amigo coadjuvante que agora é namorado(a) e o povo da vizinhança que participou do mutirão. Por alguma razão qualquer, o vilão é carregado para a prisão por dois policiais (enquanto esperneia e grita que "não é justo" e que "isso não vai ficar assim", para justificar uma possível sequência).

Em meio a frases de efeito e lição de moral, todos descobrem que a existência humana é uma simulação computadorizada e que o filme, na verdade, trata-se de Matrix IV.

9 de janeiro de 2012

Stress III

Longa viagem de carro. O motorista concentrado no trânsito na rodovia e a mulher, no carona, diz:
- O futebol, por sua origem.
- Quê?
- O futebol, por sua origem. Seis letras.
- Ah. Tem alguma já?
- A segunda é erre e termina com ão.
- Bretão.
- Como?
- Bre-tão.
- Ah... entendi.

Mas não entendeu. Acho que nem imaginava que o esporte é inglês e, portanto, vem da "Bretanha". Logo estava reclamando:
- Não tá fechando... aqui deveria ser um bê!
- Onde?
- Aqui na primeira, onde me mandou escrever "pretão"!

Depois de risadas e explicações, ficamos sabendo que ela achou que o futebol era um esporte pretão por causa dos muitos jogadores negros.

7 de janeiro de 2012

Irritada

Barulho, na cozinha desocupada, da louça empilhada caindo por toda a pia. Na sala, ela me pergunta:
- Por que as coisas mal-ajeitadas caem só um tempo depois?
- Porque é assim que as coisas são, ué.
- Elas deslizam uma sobre as outras até cair?
- Sim, acho...
- Que saco! - visivelmente irritada - Bem que podiam cair na hora!

É, seria bem mais prático.

14 de dezembro de 2011

Seis Graus e Separação

Todos devem conhecer a teoria que diz que quaisquer duas pessoas no planeta estão ligadas por até - no máximo - seis níveis de separação. Você conhece alguém que conhece alguém... que conhece o Papa. Qual Papa? Presumivelmente o atual, mas acho que vale pra qualquer pessoa viva. Não sei, não fui eu que inventei essa teoria.

Nesta grandiosa República da Sagrada Castidade moram diversas pessoas. Ênfase em diversas. 

Um colega, e sua noiva, estão em processo de achar apartamento. Compreensivelmente (aqui é o Rio de Janeiro) é um processo demorado.

Parece que combinaram de ir dividir apartamento com a irmã da noiva do colega. Só que a busca por apartamento demorou tanto que o contrato de aluguel dela terminou - então ela passou a dormir na República também, provisoriamente.

E ela tem um namorado - que acho que oficialmente mora em outro lugar, mas acho que aqui é mais perto da vida diária dele, e ela já dorme numa cama (inflável) de casal, mesmo...

Aí, um dia, veio o irmão dele dormir também. E outro dia também. Não sei quão frequente, mas frequente o suficiente pra um dia se sentir em casa e trazer consigo um amigo.

Aí, pra você que está furiosamente desenhando um diagrama estilo Cem Anos de Solidão poder conferir se acertou, o amigo do irmão do namorado da irmã da noiva do meu colega se sentiu em casa pra ir lá abaixar o som do Cazuza.

O Cazuza mora aqui e não conhece o Papa. 

Mas como ele também não conhece o amigo do irmão do namorado da irmã da noiva do colega que baixou seu som, estamos de olho pra ver se uma hora dessa o Sumo Pontífice da Igreja Católica Apostólica Romana não vai entrar aqui pra pedir pra gente parar com o barulho do Mario Kart.

10 de dezembro de 2011

Estranhezas II

- Com licença, posso passar na sua frente?
- Óbvio.
- Obrigado, com licença.
- Óbvio que não. Olha seu carrinho, só tem cachaça.
- E daí? Quem bebe não pode ter pressa?
- Pode, mas eu também tenho.
- Só vou levar duas garrafas. Você tem pelo menos uns vinte pacotes aí, vai demorar muito mais pra passar no caixa, deixa eu ir na sua frente?
- Não, meu Doritos é mais importante que sua bebida.
- E se eu levar só uma garrafa, posso passar na frente?
- Nunca!
- Com licença, posso ajudá-los?
- Sim, esse bêbado quer passar na minha frente.
- Eu? Eu não sou bêbado.
- Senhor?
- Ele, sim!
- Eu não, mentira, eu só pedi educamente se ele me deixaria passar porque só tenho um item e ele tem uns trinta. Aqui não é a fila do caixa rápido?
- Senhor, realmente, o senhor excedeu o limite de quinze itens. Queira se retirar da fila, por favor.
- Nunca! Olha aqui, pega o resto, dez, doze, catorze... quinze. Pronto. Agora são só quinze no meu carrinho e os outros vão pra cestinha dele.
- Mas eu não quero comprar esse salgadinho...
- Senhor, não jogue os produtos nas cestas dos outros clientes. Saia da fila.
- Ninguém te perguntou se quer ou não quer!
- Acho que estou passando um pouco mal. Esse lugar está escuro ou é impressão minha?
- Senhor, vou ter que pedir para que o senhor se retire.
- Nunca!
- E mal ventilado. Preciso de um gole.
- Por favor, senhor, saia agora. Alô, segurança, situação na fila do caixa vinte e três.
- Não saio daqui sem meu Doritos! Como tudo antes de me jogar pra fora!
- Ô coisa boa, essa é das fortes!
- Os senhores não podem abrir os produtos na loja, por favor. Segurança!
- Ah, como eu adoro Doritos! Dá um gole?
- Troco por um salgadinho.

19 de novembro de 2011

Roteiro

Personagem principal: John McJohn, um homem branco de classe média em Nova Iorque que dirige um Taxi e luta contra a ganância das grandes corporações. Ele é bombeiro e advogado e tem um filho criança de um casamento que não deu certo.

Seu melhor amigo Jamahl é um policial negro, malandro, com "streetsmarts", afastado por ser efetivo mas não convencional e sempre causar danos a propriedade pública, deixando seus superiores encrencados com o prefeito. A namorada de John McJohn é Sissy Le Boom Boom; uma francesa intelectual que adora violão espanhol e conhece todos os tipos de vinho do mundo. Só fala frases de intelectuais famosos, usa pouca roupa e é claramente o estereótipo de mulher idealizada do diretor do filme.

Todo o lado paterno da família de McJohn, os McJohns, é composto por vampiros (alguns bons, outros maus); todo o lado materno, os Jeffersons-Ottawas, por índios norte-americanos que são lobisomens. Todos os irmãos de McJohn são super-heróis. Todos os vizinhos no seu bairro são supervilões. Seu animal de estimação é um animal falante com comportamento antropomórfico engraçado e levemente repugnante (ele bebe, peida, fuma maconha e faz caretas); apesar de sempre ensinar lições de vida valiosas para as crianças da vizinhança (especialmente aquelas com problemas familiares causados pela ausência de um dos pais) através da prática de variados esportes.

Um dia, McJohn ganha poderes por ter entrado em contato com insetos que saíram de um objeto-asteróide, enviado do espaço por uma raça de aliens (do futuro de outra dimensão onde as máquinas dominaram os humanos) que já estiveram na Terra (e provavelmente são responsáveis por tudo que o Homo sapiens já produziu): ele passa a ler mentes. Só consegue, no entanto, ler as mentes de: pessoas que trocaram de corpos com crianças para aprender uma lição de vida; psicóticos assassinos seriais que estão confinados em um local com vítimas em potencial; e mulheres jornalistas que, apesar da independência e atitude, são claramente femininas e (no fundo) românticas, e acabam descobrindo que aquele amigo bem educado, inteligente, rico e bonito que nunca tinham percebido antes é na verdade o amor de sua vida.

Quando o mal absoluto e o diabo raptam a filha do presidente dos EUA que estava em um acampamento de verão no qual diversos adolescentes descobrem a sexualidade e se vingam dos bullies e professores autoritários do colégio que proibiram o rock n' roll, McJohn tem de buscar algum tipo de ajuda de natureza pessoal e revelar um grande segredo sobre seu passado. No final, ele derrota os vilões e resolve todos os problemas em um auto-sacrifício heróico. Mas volta à vida (por alguma razão que foi tornada possível por alguma exposição anterior no filme) e tudo acaba bem e possibilitando uma sequência e o estabelecimento de uma franquia.

Para o público, o final é ambíguo: é impossível saber se tudo aconteceu como uma metáfora sobre a economia e política norte americana ou se foi tudo apenas um sonho onde todos estão mortos. E claro,  todo o filme é simbólico com tema sexual, racista ou religioso.

4 de novembro de 2011

Cena noturna

História verídica (ou bem inventada). Amigo meu conversando com uma mulher falou de férias e ela, provavelmente herdeira de nome composto:

- É como eu sempre digo, sou muito estranha, ha-ha-ha. Gosto muito mais do inverno na nossa casa de campo aqui no Brasil do que escapar para o verão de New York com meu pai ou de com minha mãe pra eidi-quei - ah, I'm sorry - Honk Kong.

A gente aqui sem nenhum eidi-quei e ela lá com tantos que precisa até desambiguar.

28 de outubro de 2011

Todos os homens do mundo

Já há algum tempo morando com a namorada, perde-se um pouco a perspectiva das coisas. Mas hoje ela foi viajar, e só volta daqui há uma semana. Vou aproveitar pra fazer tudo que não faço quando ela está aqui.

Primeiro, vou manter tudo limpo e arrumado, sem me preocupar em fazer pose de bagunceiro e bad-boy da higiene residencial. É difícil, mas tenho convencido esse tempo todo, que sou bagunceiro, atrapalhado, jogador de meia pelos cantos e tantas outras coisas que vão contra minha própria natureza. Faço, repito, só pra parecer que não me importo, que sou descolado com a vida, que pra quê limpar se vou sujar depois? Então, aproveitando que ela não está, vou finalmente poder ser o verdadeiro fraco eu e lavar o chão com escovinha, usando detergente suficiente pra descolorir os joelhos (como tanto adoro fazer). Ah, como adoro esfregar bem os cantos!

Segundo, vou cozinhar e fazer todas as refeições do dia. Mais uma vez para impressioná-la, dessa vez com a eficiência energética do meu organismo, nunca tomo café da manhã e só janto porcaria. Agora que ela não está, vou aproveitar pra botar em dia aquele curso de culinária (que nunca ficou sabendo que fiz, porque quero parecer mais macho) e testar todas as minhas receitas novas. Nesse exato momento estou digitando com uma mão e acabando a polenta sobre cama de tomates e manjericão acompanhada por um pernil assado ao molho de cebola, tudo perfeitamente calculado para uma porção para duas pessoas, que pena que terei de comer sozinho. Já dizia o poeta: a boa cozinha não é egoísta. Só pra um não é gostoso. Mas fazer o quê? Pelo menos posso lavar toda a louça depois.

Por fim, vou dormir nos horários certos e não nos errados; tomar banho em silêncio e não compondo sinfonia de arroto; gastar meu dinheiro com coisas úteis para a casa e não em jogos ou no fim de semana; ir no médico se sentir alguma coisa em vez de dormir até sarar; pedir informações para encontrar o destino.

Como é bom um tempo só pra gente ser quem a gente é de verdade. Dá forças pra voltar a ser o cara que não limpa, não cozinha, não faz as refeições direito, não vai ao médico, não pede informação, toma banho cantando, compra mais entretenimento besta do que provisões necessárias, que dorme a manhã inteira, escuta música ruim sem fone e passa a madrugada acordado.

Enfim, pra ser como todos os homens - sim, mulheres, todos do mundo - fingem que são.

13 de setembro de 2011

Rápida

Eu até poderia contar aquela história sobre meu pai tentando ensinar a estagiária a fazer cálculo de porcentagem simplificando cada vez mais os exemplos até perguntar 'quantos porcento dá dez partes de cem' e ela não conseguir responder... mas agora já contei.

30 de agosto de 2011

Scooby Doo 2099

- ... e eu teria conseguido se não fossem esse cão robô e esses idosos intrometidos!

25 de agosto de 2011

Mendigos da manhã

Fui com os amigos e colegas de república a um lugar bem hipster do Rio de Janeiro. Naquela mágica hora do dia em que está amanhecendo e o número de crimes com morte diminui reunimos o grupo para partir rumo às ressacas. Vamos rachar um táxi? Não, vamos a pé, quem sabe conseguimos comer alguma coisa no caminho? E conseguimos.

Um membro do grupo abordou um senhor que abria uma fruteira para os negócios do dia: tenho muita fome, quebra um galhão aí pra gente, me dá uma laranja? Ele deu. Ninguém nega, parece, comida para os desesperados que pedem educadamente. Em grupo. Às seis e trinta da manhã. Espera, disse meu amigo mendigo com iniciativa, tem como cortar pra gente? Sim, tinha. Podem ser duas laranjas? Somos vários e uma não chega.

Receber aquelas laranjas não só nos nutriu e forneceu material para um divertidíssimo jogo de tiro-ao-alvo com bagaço (com o alvo sendo uma agregada de um amigo, adquirida durante a noite) como também nos iluminou sobre as possibilidades da mendicância cedo-matutina. Partimos para a feira de rua (era no caminho, mesmo). Lá mendigamos um bom pedaço de mandioca; aproveitei o embalo e barganhei. Quanto é o quilo, seu moço? Só tenho dois pilas trocados, dá pra ser? E dava, levei com trinta porcento de desconto.

Mas eis que bateu a fome de verdade e paramos para comer um bauru, sanduíches e assemelhados. A fome é muita, prepara essa mandioca aqui pra gente, por favor? Ele não soube bem o que fazer e chamou o chefe. Até preparava, disse, mas demora muito pra ferver. Que pena, dissemos, mas será que não dá pra adiantar pelo menos uma porção de salada de frutas como cortesia? E deu, no final das contas.

Tudo é possível. Pra quem pede educamente, em grupo, às seis e trinta da manhã.

Tudo aconteceu já há alguns meses e, depois de entrar na geladeira naquela manhã, o tal quilo de mandioca nunca mais foi visto.

3 de agosto de 2011

O Resgate do Soldado LAVATRON

Fui com os colegas de república à uma festa na Lapa. Na volta, já (bem cedo) de manhã, paramos ainda longe de casa para comer alguma coisa e ali, na sarjeta, estava uma máquina de lavar gigantesca e magnífica. Lavatron, como seria nomeado posteriormente. Meio arrebentado, um tanto enferrujado, todo quadradão e pesadísimo - lembrava uma daquelas geladeiras antiquíssimas que eram feitas pra nunca mais estragar.

Lavatron fora jogado fora para quem quisesse carregá-lo dar fim, supomos. Deliberamos e decidimos que seria uma ótima aquisição para a vida comunal na ReSaCa. Acho que ainda sob a empolgação de tê-lo encontrado, conseguimos levantá-lo sem muito drama. Atravessamos a avenida, assentamos Lavatron na entrada de uma lanchonete. Entramos e fizemos a refeição matutina clássica de quem volta da Lapa (com direito a larvinha na salada), montando guarda simbólica para evitar que alguém levasse embora nosso amigo Lavatron.

Colocamos os restos (a serem aproveitados depois) dentro dele, uma solução óbvia e higiênica para o problema de ter de carregar uma máquina de lavar gigantesca carregando comida simultaneamente.  Éramos quatro, e dividindo os muitos quilogramas de Lavatron igualmente entre nós ainda sobravam, com certeza, quilos o suficiente para mais um conjunto dos mesmos quatro. Os lucros imagináveis (a economia com lavanderia) eram muito altos, no entanto, para que desistíssemos. Era quadradão, difícil de carregar e cheio de partes que eram próprias para causar hematomas e arranhões, mas nem isso nos deteve, graças à aplicação da estratégia dos descansos.

São onipresentes nas calçadas de Copacabana os pequenos postes de ferro ou concreto colocados para evitar que os motoristas estacionem ou passem com os carros por ali, cada um com um metro de altura e todos separados por dois ou três metros entre si. Não sei como se chamam, mas naquele dia eram o 'descanso'. Dado que Lavatron pesava uma quantia ainda desconhecida entre cem e quatrocentos quilogramas (os testemunhos dos envolvidos divergem), conseguíamos com muito esforço carregá-lo de um descanso para o outro, e só. Sendo que estávamos distante de casa mais de um quilômetro, imagina-se que cada avanço de dois metros e meio em média não era motivo pra comemoração. Mas era.

Apesar dos danos estruturais infligidos a Lavatron e a nós mesmos, conseguimos avançar um bom pedaço. Tivemos de pedir ajuda a um pobre estudante que marchava em pleno sábado de manhã para uma prova de matemática. 'Ei, amigo, dá uma mão aqui'. 'Mas eu tô comendo um salgado, tomando um açaí...', disse ele. 'Não faz mal', respondemos, 'a gente espera'. Foi nesse dia que aprendi que as palavras mágicas pra pedir ajuda a um cariocas não são por favor e obrigado, como me ensinaram na pré-escola, mas 'quebra esse galhão pra gente aí'. Depois de receber a ajuda do infeliz 'voluntário' e mandá-lo seguir seu caminho (todo sujo e esfolado em direção a uma prova de geometria plana), conseguimos alugar a ajuda de um feirante para carregar Lavatron pelos últimos cem metros, usando uma engenhoca de carregar produtos que envolve um caixote, uma bicicleta e um feirante bem disposto a ganhar dez trocos.

Chegávamos ao final da jornada surrados, arranhados e cansados e a antecipação era enorme: será que Lavatron vai funcionar? Será que, mesmo que funcionasse antes, o dano estrutural que causamos a ele não tenha sido demais para o pobre coitado? Será que a coca-cola que deixamos dentro dele ainda tem gás depois desse chacoalho todo? A montagem de Lavatron foi fácil, era uma questão de encaixes forçados e de quebrar boa parte das conexões sensíveis até que ficassem penduradas o suficiente.

Conectamos Lavatron na tomada. Hora da verdade. Girou-se o botão e... nada. Não funcionou. Desespero. Tudo isso pra nada? Valeu a pena? Eis que alguém lembrou, antes da fúria em massa descambar para uma inevitável escolha de culpado e linchamento: 'troca a tomada, essa tá meio quebrada e os buracos tão um pouco apertados'. Trocamos. E funcionou! Tudo vale a pena quando a tomada não é pequena. Para testar se estava puxando água despejamos um pouco da coca-cola no tubo e tudo funcionou maravilhosamente bem.

Que alegria, Lavatron girando as partes que deviam girar e fazendo um barulho ensurdecedor como deveria fazer! Que alegria, o resgate do soldado Lavatron um sucesso, nossos braços machucados, arranhados e cortados, mas nossa missão cumprida!

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Ninguém nunca usou Lavatron. Ele ficou lá, instalado num canto, sem que ninguém se dignasse a comprar sabão em pó uma única vez, apesar de todos os apelos da empregada para que o fizéssemos. 'Posso pelo menos lavar os panos de limpeza', dizia ela. Apenas algum tempo depois, alguém comprou uma máquina nova e Lavatron foi novamente parar na sarjeta, esperando o próximo grupo de desavisados ávidos por aventura em uma manhã de sábado. Espero que tenha uma boa vida de uso. Espero que faça nosso sacrifício valer a pena. Espero que eu não tenha contraído tétano.

22 de junho de 2011

Vingança

Aconteceu que depois de usar o computador de um colega de república, deixei o email logado. Previsivelmente, foi enviado uma mensagem em meu nome endereçada aos colegas de república (cópia para todos), tirando sarro com minha já dessarrada cara e desmoralizando meu justo e merecido status de super campeão, mestre do mestres do Mario Kart 64.

Jurei vingança.

Após uma breve ponderação descobri quem foi o perpretador e, portanto, alvo de minha certeira retaliação. Vamos chamá-lo de Vítima, apesar do nome evocar um sentimento de inocência que não existe no sujeito (afinal de contas, ele que começou).

Descoberto o alvo, tracei um plano. Toda vez que Vítima digitava uma senha, eu observava atentamente os padrões, quais teclas eram pressionadas, quantas com a mão esquerda, quantas com a mão direita, quantos caracteres especiais. Quantas horas de investigação! Eis que após cruzar as informações obtidas pelo processo de observação por-cima-do-ombro com as provenientes de engenharia social e análises psicológica e social de Vítima, consegui obter uma de suas senhas.

A do Facebook.

Mas não postei imediatamente um comentário degradante sobre Vítima. Não li nenhuma de suas mensagens particulares para fazer graça dele junto ao grupo de amigos que temos em comum. Não entrei em nenhuma comunidade de objetivos homoeróticos para tirar um merecido sarro com a sua também dessarrada cara (aliás, existe comunidade no Facebook?). Não, oh, não, meu amigo. Minha vingança é clara, objetiva e paciente.

Durante um longo tempo, entrei todos os dias na conta de Vítima e imediatamente troquei a linguagem da interface de English(US) - inglês norte-americano - para English(Upside Down) - inglês invertido. Sim, meu caro, existe uma opção para deixar todo o texto do Facebook ao contrário. Vítima, sem saber o que acontecia, deve ter ficado confuso; porque diabos meu Facebook está de cabeça para baixo? Por que minha vingança assim decretou, Vítima. E minha vingança é suprema.

Só consigo imaginar as reações de Vítima em cada uma das 37 vezes que fiz a mesma coisa. Será que desconfiou que alguém tinha sua senha? "Não, não pode ser, já teria postado bobagem em meu nome ou lido alguma notificação a essa altura". Mas onde tantos outros fracassariam, minha sede de vingança triunfou.

E triunfou também minha habilidade de encenação. Não contente com o infortúnio a que submeti Vítima, ainda torturei-lhe um pouco mais. Hoje mesmo tivemos uma conversa que se deu da seguinte forma:

- Viu essa notícia ? - mostrando notícia sobre novos vírus e malwares que podem importunar os incautos que clicam em links inseguros na rede social em questão.
- Cara, acho que tenho algo do tipo, já faz tempo que meu Facebook fica de cabeça para baixo.

Para manter a farsa, tive de fazer cara de espanto. Lutei contra a gargalhada que surgiu do fundo de meus pulmões, do fundo mais profundo que os mares mais profundos do mundo dos meus pulmões; pressionei o machucado que tenho no joelho com força para que a dor me ajudasse a impedir que o júbilo irrompesse pela minha traquéia como o petróleo vazante de uma plataforma marítima da British Petrol. Lutei, sofri, e consegui.

Hoje, amanhã ou quiçá na próxima semana Vítima lerá estas linhas e trocará sua senha. Até lá, terá que continuar treinando sua já proficiente (conforme me disse) leitura invertida. Espero que leve para sempre consigo as palavras que saíram de minha boca enquanto engolia a maior gargalhada da história da humanidade:

- É... tem que ver isso aí.