Nada dito aqui deve ser levado a sério. Deve ser levado ao forno por 30min. Não se sinta culpado ao não servir, eu também não sirvo pra nada. Blog melhor visualizado em resolução 1680x1050 pixels, em monitor SAMSUNG de 22 polegadas e sob efeito de psicotrópicos. O blog é ruim e os posts mais novos não vão pro topo. O limite de caracteres nessa mensagem é 500, então sobrou espaço: vendo monza 83.

A Incrível Vida na Cidade Grande

Viveu a vida toda numa cidade de interior, uma cidadezinha bem pequena, bem previsível e pacata por inteiro. Conhecia todos os vizinhos e participava de um grupo de baralho mais antigo que a TV em cores, esse tipo de coisa. De repente, por sei lá qual guinada do destino, se viu preparando as malas pra passar um bom tempo na Cidade Grande.

- Vão te roubar tudo! - foi a primeira coisa que diversas de suas amigas também velhinhas também do interior disseram. Vão te enganar, cuidado com o golpe do bilhete, vê se não cai na história de quem pede ajuda pra remédio, pra passagem. "Lá não é que nem aqui" disse, provavelmente, a amiga com a qual tentou arranjar casório entre os herdeiros, "onde todo mundo se conhece, vai todo mundo perceber que veio de fora".

Chegou na cidade grande amedrontada, portando carteira falsa e escondendo os documentos na meia, dividindo o dinheiro entre os vários bolsos e outras técnicas caipiras de lidar com o perigo. Chegou a pedir pro neto botar um GPS - um "aparelhinho de rastrear", na verdade - na mala, caso a roubalheira começasse já na rodoviária. O guri jogou um aparelho qualquer quebrado lá dentro só pra apaziguar a velha. "Consegue ver onde tá minha mala?", ela pediu pra fazer o teste. "Ainda não, vó, só vou ligar quando a senhora for, pra economizar a bateria".

E foi desnecessário, mesmo. A rodoviária não tinha batedor de carteiras, ninguém tentou vender monumento histórico, ninguém se ofereceu pra carregar as malas e com elas sair correndo. O primeiro dia acabou sem desastres. O segundo, a primeira semana, também. Já mandou avisar as comadres que estava se virando e que talvez a Cidade Grande nem fosse tudo aquilo. Na segunda semana já se aventurou a ir ao mercado. Depois, ao shopping e "Manda avisar todo mundo no clube que eu já vou ao cinema sozinha!". Não demorou pra descobrir onde pega o ônibus e em pouco tempo era ela que dava informações para os mais desinformados. "Sim, meu filho, é seguindo reto aqui e não esqueça de dobrar quando chegar na avenida do parque!". 

Eis que um dia perdeu a hora e precisou pegar um ônibus num lugar desconhecido - sua linha costumeira cessava cedo no fim de semana. Já era escuro. As pessoas já não pareciam tão bem intencionadas, mas ela se recusou a ceder ao antigo medo. Pegou o primeiro ônibus, "Esse pára perto do shopping?". Parava, sim. Olha só, já estou a caminho de casa.

Mas eis que embarca um rapaz encapuzado, de fones de ouvido, caminhado gingado. A própria imagem do meliante, o tipo de rapaz que na sua cidade todo mundo comenta que namora com aquela guria que sempre soube que não era boa coisa. Sentou ao lado dela, com vários outros bancos ainda disponíveis. Calma, não há de ser nada. Tentou desligar, apreciar a viagem, prestar atenção no caminho pra não perder o ponto; e conseguiu. Distraída, lhe ocorreu em checar as horas -  e foi aí que percebeu o furto.

Seu relógio de pulso sumira. Não estava mais lá, ainda podia sentir seu peso, o aperto da pulseira, mas ele não estava mais lá. Olhou assustada para o rapaz sentado ao seu lado e logo se arrependeu do movimento brusco. Desviou o olhar, "Ai meu Deus, e agora, se eu reclamo é capaz de me bater, esse pessoal rouba tudo pra comprar droga, me avisaram que era assim aqui na Cidade Grande". Tinha quase certeza que o vira colocar a mão no bolso do casaco abruptamente, com certeza escondendo algo. O que mais lhe ocupava os pensamentos, no entanto, não era a falta do relógio. Tinha sido caro, mas compra-se outro...

O problema era o orgulho. Como poderia voltar pra casa e encarar toda aquela gente que já a considerava uma vencedora destemida por não ser uma vítima da metrópole? Se pelo menos não tivesse contado vantagem de conseguir ir ao cinema sozinha... Não, não era só isso. O problema era que se sentira bem tomando conta de si mesma pela primeira vez na vida, talvez, e queria - precisava - continuar acreditando que era capaz de fazer isso pra sempre.

E aí tomou uma daquelas decisões que moldam a vida do sujeito. Uma daquelas que entram no resumo da biografia e acaba sendo utilizada para descrever o caráter do indivíduo para o resto de sua vida e além: decidiu que não seria a vítima. 

Abriu a bolsa com movimentos mínimos. Tirou lá de dentro a escova de cabelo, segurando-a do modo inverso. Encostou o cabo nas costelas do rapaz com uma violência medida e graciosa. Ele levantou o braço e tentou ver o que era aquilo que lhe pressionava, apesar da ordem instantânea da velhinha: "Olha pra frente!". Ele o fez, confuso, sem ter visto nada pois, mesmo sem querer, ela cobrira a visão dele com o braço oposto. Um movimento de assassino profissional, feito no puro improviso. 

Já assustado e confuso, o rapaz ouviu as ordens seguintes: "Coloca o relógio na bolsa e desce no próximo ponto". Exclamou um quê, mas uma pontada mais forte calculada nas costelas o calou. Ela sentiu o rapaz movendo as mãos dentro dos bolsos, lhe alcançou a bolsa aberta, "Anda, vai logo!". Ele depositou o relógio lá dentro e ativou o sinal de parada. Saiu sem olhar pra trás e desceu do ônibus quando a porta abriu.

A velha quase não conseguia segurar a felicidade. Queria gritar, "Sou uma heróina! Posso cuidar de mim mesma! Vou ser o motivo de orgulho e assunto da conversa até a o final da quaresma!". Desnecessário dizer que não foi com o mesmo espírito positivo que lidou com o fato de encontrar em sua bolsa um relógio colorido, metálico e grande, de estilo hip-hop - bem diferente do seu, fino, leve, bem acabado e ainda bem guardado dentro da mala, no seu quarto, ao lado do falso GPS.