Dona Lílian
Introdução
Nao lembro de a ter encontrado até o dia em que me acordou, interrompendo o pouquíssimo sono que intercalava entre meu trabalho, estudo e camaradagem com os demais membros da ReSaCa (vencer inexoravelmente no Mario Kart 64 e mentir sobre a vida no Rio Grande do Sul).
"Que houve? O que aconteceu? A senhora está bem?"
Não foi por isso que me acordou, não lembro a razão, mas na conversa que começamos me perguntou se eu vinha do Sul. Quando confirmei me contou um pedaço da sua história — que deve ter depois me contado, aos pedaços novos e repetidos pelo menos uma centena de vezes pela próxima década: sua família também era do Sul, onde o avô tinha alguma terra. Mas veio, vieram muitos, para o Rio de Janeiro, e uma família bem grande com pouca herança se dispersou. Mas ainda lembrava, com carinho, de ter tido um cavalo quando era criança.
Logo eram parte da minha rotina conversas onde ela me explicava a sua vida e o que acontecia na ReSaCa, incluindo de onde ela conheceu cada um dos membros. Me contava histórias com referências a detalhes e pessoas que não havia a mínima possibilidade de que eu conhecesse. Sabendo que eu conhecia muito bem Armando, Dona Lílian falava coisas como: "amanhã devo ir na casa do seu Emílio, amigo do Armando, ele está precisando porque a madrasta foi viajar". Eu não conhecia Emílio, que dirá sua madrasta. Isto não a impedia de me contar. E tanto pela insistência acabei por aprender sobre tantas pessoas com quem ela falava, mas eu nunca falei.
Este, aliás, também é um bom exemplo daquela sua peculiaridade - raramente falava da sua história, ou passado, mas falava muito do que estava fazendo agora e do que ia fazer no futuro, especialemente no futuro próximo. Parece que ela nos usava para planejar sua semana? Como se preferisse concretizar suas ideias falando.
Ou ouvindo - aprendi depois que se não havia com quem falar destes planos, ela falava sozinha. Essa também era uma característica que testemunhei por centenas de vezes, a tal ponto que uma das frases que mais deve ter ouvido de mim foi - "como é que é, Dona Lílian?", quando eu a interrompia, no meio de algo metade discurso, metade planejamento, e metade conversa consigo mesma. E ela sempre me falava, enfim, o como é que é - me explicando como, quando, ondes e porquês, embora frequentemente eu não fizesse a mínima ideia dos quems.
De qualquer maneira, cada vez, sem falha, ela me falava invariavelmente continuando o assunto que, pra mim, já começava no meio.
Acumulamos - nós, egressos da República, muitos dos quais, como eu e Luíza, continuaram com ela como diarista depois de emanciparem-se - muitas histórias sobre ela. São histórias que, no conjunto, devem conseguir explicar - como é que é, Dona Lílian?
Então eu vou contar como é que é, Dona Lílian, todo causo da senhora que eu lembrar, fora de ordem, talvez começando no meio, bem como você me contava.
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1. A amante amiga
Dona Lílian perguntou se meu celular era do Sul (como eu, pelo sotaque evidente). E era - claro, ainda contava moedas e dependia do 'plano família' dos meus pais. Perguntou se podia usar meu telefone pra fazer uma ligação pra um telefone "lá de Rio Grande".
Estranhei quando ela discou, botou o telefone no ouvido, deixou chamar duas ou três vezes e, assim que alguém atendeu, me devolveu o telefone com uma expressão curiosa, um meio termo entre surpresa e travessura. Não entendendo bem o que era pra fazer devo ter titubeado até que ela me instruísse, mimicando silenciosamente, pra eu desligar.
- O que foi isso, Dona Lílian?
- É que foi ela que atendeu.
- Ela?
- É. A mulher do meu namorado.
Por vários dias recebi ligações daquele número e outros, com o DDD de Porto Alegre. Invariavelmente de uma mulher, talvez sempre a mesma, talvez sempre ela, me perguntando "quem é". Cada vez eu respondia um nome diferente, mas sempre dizendo que morava no Rio de Janeiro. Deve ter sido uma das primeiras oportunidades que tive de imitar sotaque carioca. Pena que não gravei.
Evidentemente ela já desconfiava de seu namorado, este homem do Rio de Janeiro, ou do Norte? De muitos lugares, cujo trabalho o levava de um porto a outro e em certo momento o trouxe até o Rio de Janeiro, antes de levá-lo a Rio Grande.
Ao contrário dos romances pulp coleção Sabrina (tive que perguntar ao ChatGPT e Google para lembrar) nos quais o homem é descrito como uma mistura vegetal-mineral-animal (com pernas que parecem troncos de sequóia, um abdômen duro como um cristal de quartzo, e referências animais reservadas para as cenas mais quentes), creio que este era um homem comum, de meia idade. Isto não o impediu de protagonizar uma cena de sedução na vida real.
Encontrou-se, na ocasião em que esteve no Rio de Janeiro, em um ônibus interurbano. Sei disso porque Dona Lílian contou com detalhes dignos daqueles romances a ordem dos eventos. Contou-me que sentaram em poltronas adjacentes, lado a lado, em silêncio quase total, mas tendo trocado gracejos e, presumo, olhares. Em algum momento, Dona Lílian levantou para ir ao banheiro e propositalmente roçou a sua saia na perna dele. Foi o suficiente.
Acompanhei por meses a saga, o affair. Usou meu telefone pra ligar pra ele diversas vezes, algumas com sucesso. Isso garantiu que eu continuasse a receber as tais ligações, aliás, mas isto mais me divertia do que incomodava. Marcou encontros com ele quando veio ai Rio e em algum momento, marcou um encontro em alguma cidade de São Paulo (ou Espírito Santo?) onde ele supostamente morava.
Tempos depois me falou que estava desconfiada. Neste encontro no campo como mandante ele deu pra trás. Depois, fulana lhe disse que era porque ele tinha outra. Dona Lílian não curtiu a ironia de ser amante traída e planejou ir até lá pra confrontá-lo. Não lembro como ou com quem foi, mas foi. Algo de confusão aconteceu, mas os detalhes me escapam. Será que confrontou a outra? Só levou um perdido dele? Não lembro.
Mas lembro que no fim das contas a outra era a primeira. A ela, que era verdadeira outra, não sabia primeira, embora desconfiasse da Dona Lílian — que nesta nomenclatura seria a outra-outra. Tendo retumbantemente terminado com ele (mas acho que houve pelo menos um revival) Dona Lílian por fim atendeu a chamada da ela. Contou pra ela sobre a primeira e ela também terminou com ele.
No vínculo de falarem mal dele, viraram amigas.
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2. As Aventuras de Olívia com Dona Lílian
Em múltiplas ocasiões, ao longo dos anos, Dona Lílian me explicou que estava pagando algo aqui ou ali, em prestações, e pediu um pequeno adiantamento. Sempre foi totalmente correta e me pagou tudo de volta. Combinávamos de descontar um pouco aqui e um pouco ali dos pagamentos que eu fazia e logo já tinha acertado tudo.
Em certa ocasião fez um grande gasto no cartão de crédito que costumava pegar emprestado da filha. Esse gasto foi para ajudar outra pessoa - uma vizinha, muito amiga (chegou a usar a expressão "irmã de criação", mas creio ter sido hipérbole), que queria organizar uma festa para uma menina da família.
Aconteceu que por falha intencional ou acidental esta vizinha não conseguiu devolver o dinheiro - que seria usado para pagar a dívida do cartão - como havia prometido. Dona Lílian estava portanto enrolada com aquela dívida e sofreria juros abusivos. Emprestei o dinheiro pra cobrir a dívida inicial e apaziguar o que já estava virando uma briga grave lá onde ela morava (pelo menos, pelo que ela me contara).
Ela ficou um pouco descontente de ter uma soma grande em débito comigo e me perguntou se podia ajudar com mais algo além do que a esporádica faxina. Morávamos em um apartamento pequeno e nem era muito factível precisar de mais ajuda doméstica mas logo outra oportunidade se apresentou - marcamos viagem, eu e Luiza, e pela primeira vez seria impossível levar a cachorra junto.
Nossa opção seria encontrar alguém para cuidar dela (o que poderia ser uma imposição chata, dado que a grande maioria das pessoas no nosso círculo social não teriam uma rotina na qual Olívia encaixaria sem dar muito trabalho), ou colocá-la em 'creche de cachorro'. Que era cara. Propus a Dona Lílian que cuidasse da cachorra até voltarmos - pagaria a ela (descontando um bom pedaço da dívida) o que doutra forma pagaria para a creche. Ela aceitou.
Inaguramos aí o mecanismo de Dona Lilian cuidar da Olivia quando viajávamos. Ela adorava Olivia e a Olívia a adorava - era uma competição ferrenha de gostar muito. Acho que foi em parte o afeto que desenvolveu com Olivia que a levou a pegar a própria cachorrinha, a Pituxa (mas essa é outra história).
Eu sabia que Dona Lílian permitia transgressões alimentares da Olívia durante estas viagens. A cachorrinha deveria comer apenas ração, nunca da nossa comida. Mas voltávamos de viagem e Olívia curiosamente pedia comida na mesa do jantar, coisa que não fazia antes, e demorava pra se reacostumar à regra da normalidade. Aliás - as transgressões alimentares com Dona Lílian não eram apenas em viagem. Com ela Olívia era escancaradamente 'pidincha'. Pulava e latia, e eu falava: "Dona Lílian, ela só pede porque a senhora dá". "Mas eu não dou!", retrucava ela. E fatalmente, se eu me afastava da mesa por segundos, Olívia parava de latir e pular, e quando eu voltava (com a Olívia ainda se lambendo) a própria Dona Lílian já se defendia - "Não dei nada não! Foi pouquinho!", ou seja, defendia e confessava, assim mesmo, na mesma leva.
O que eu demorei a descobrir foi que Dona Lílian permitia transgressões também de passeio. Olívia deveria sempre andar de coleira e puxador na rua (aliás, todo cachorro). Só que essa cachorra tem um problema de ansiedade com a própria coleira, fica nervosa quando alguém a pega pois já imagina que vai passear. Comigo não é problema, mas as pessoas tem medo da mordida dela (pequena, mas feroz e dolorida, com aqueles dentinhos de alfinete industrial). Dona Lílian sabia lidar com ela, também, mas aparentemente em certas situações achava OK levar a cachorra sem coleira.
Numa dessas levou ela sem coleira da nossa casa, na Hilário de Gouveia, até o Leme. Pela Avenida Atlântica. São dois quilômetros e meio - o que não parece muito pra gente, que não tem pata curta. Mas para a Olívia, é uma epopéia. Quando fiquei sabendo, logo dei jeito de me assegurar que ela teria carregado a cachorra no colo, e ela confirmou, talvez sentindo que era o que ela deveria me dizer pra me tranquilizar. Mas bastante tempo, talvez anos, depois eu soube que a Olívia caminhou um bom pedaço desse trajeto, no meio de milhares de turistas e transeuntes. Luiza até hoje morre de medo retroativo de nunca mais ver a cachorra, raptada na multidão de Copacabana.
Mais recentemente, um pouco antes de Dona Lílian ficar doente, presenciei uma cena chocante.
Já morando num apartamento maior - para o qual nos mudamos logo no começo da pandemia - eu consegui um quarto para ter de escritório (já que oficialmente sou trabalhador remoto, em home office). Para poder limpar o tal escritório Dona Lílian pedia às vezes que eu saísse, ou esperava que eu fizesse alguma pausa. Certo dia voltando de uma destas pausas testemunhei Dona Lílian segurando a Olívia pelo peito, com as duas mãos tipo a cena icônica do Rei Leão, de foram que a mais da metade da cachorra estava para fora da janela. Do quarto andar onde moramos.
Tenho medo de altura e sinto mal-estar não só por mim mesmo, mas também quando vejo outros em situações assim. Quase desabando eu falei - "Do-na Lí-li-an pe-la-mor-de-de-us", assim pausadamente (foi como consegui falar) e ela, com maior naturalidade do mundo mas sabendo que foi pega fazendo algo que eu jamais aprovaria: sorriu, colocou a Olívia no chão e explicou.
"É pra ela poder olhar o movimento."
Depois de me recuperar expliquei pra ela não fazer mais isso, já meio sabendo que não ia adiantar. Me conformei com o fato de que devia estar fazendo algo parecido por todos estes anos e nada de ruim teria acontecido até então. Hoje, em retrospecto e sem o medo, acho que fez bem. Se divertiu, e Olívia pôde de fato olhar o movimento.
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3. A misteriosa Hora
Esta não testemunhei. Ainda na ReSaCa, mas já depois que eu saí, Dona Lílian além da faxina passava roupas. Acho que este trabalho a mais, creio que combinado e pago separadamente, foi parte do grande plano de renovação da qualidade de vida empreendido pelo mais novo e proativo membro da trupe. Creio que este causo seja relacionado ao enigmático problema do Direito acerca do usucapião de toalhas (que também é outra história).
Enfim - consta que certo dia, já um pouco tarde (Dona Lílian chegava cedo e saia tarde), passava roupas. E caiu a luz em Copacabana. Algo raro mas que, se bem me lembro, aconteceu com alguma frequência pelos idos de 2015 ou 2016, que deve ser quando se passa esta anedota.
Cai a luz, escuridão relativa, algum barulho na rua. Membros da ReSaCa que estão no apartamento são surpreendidos por Dona Lílian exasperada.
"Ai, meu Deus!"
"Que houve, Dona Lílian?!"
"Ai meu Deus, minha Nossa Senhora!"
"Que houve? O que aconteceu? A senhora está bem?"
"Ai meu Deus. É agora?"
E na pouca luz, fica óbvio que ela está ainda de pé, ao lado da tábua de passar roupa, mas com as mãos pra cima e, numa delas, segurando o ferro de passar roupa quase acima da cabeça.
"Dona Lílian, o que houve? É agora o quê?"
"É agora!?"
E passados este minuto, talvez segundos apenas, volta a energia elétrica. Dona Lílian exala -
"Ufa!" - e continua a passar a mesma peça de roupa como se nada tivesse acontecido.
Os membros da república não entendem nada.
"O que foi isso, Dona Lílian?!"
"Isso o quê?"
"O que houve com a senhora agorinha mesmo?"
"Comigo?!"
"Comigo?!"
"É, o que a senhora estava falando, 'é agora', o que foi isso?"
"Eu? Não falei nada não."
E não teve jeito de extrair dela a explicação.
Até hoje não sabemos o que era agora.