Trauma II
Se algum dia for responsável pela segurança de um local vou tentar o seguinte experimento: passar a noite no lugar. Com minha inseparável espada katana feita de palitos de picolé afiados por monges cegos da Linha Caturrita (porque Tibete já saiu de moda nos anos noventa) para minha proteção, é claro. Passarei uma noite no local para avaliar o ambiente, de forma a garantir que qualquer pessoa lá presa contra sua vontade por toda uma noite desfrute de condições mínimas de sobrevivência e conforto. Talvez esconda comida, água e bom material de leitura; mas dependendo do orçamento, posso deixar uma arma carregada com uma única bala.
Tomei essa resolução devido à experiência pela qual passei há algumas semanas. Semanas, sim, o relato está atrasado, tamanho o meu trauma, que só não é menor que minha vontade de viver ou meu e-penis por ter um número de ICQ de só cinco dígitos. E é essa vontade de viver, aliada ao já mencionado pênis virtual, que me leva a relatar aqui os dolorosos fatos ocorridos numa noite de verão.
Eis que saindo da universidade tarde da noite, trinta minutos antes de ser fechado o prédio, executo o ritual diário de último-a-sair: desligo os computadores, a cafeteira, fecho as janelas, alimento os refugiados de Botswana que foram mandados para o laboratório por engano no lugar de equipamento tecnológico por erro do Ministério Educação, desligo as luzes e chaveio a porta. Mas, pobre de mim, a porta que liga o prédio anexo, onde estou, ao principal, onde fica a saída, está trancada.
Ligo para a pessoa encarregada de chavear o prédio, aviso-lhe que estou trancado e que por favor venha abrir a porta, tenho que pegar o último ônibus e se eu perder esse trem, que sai agora as onze horas, só amanhã de manhã. A pessoa afirma que não tem a chave, vai entrar em contato com a Vigilância para que venham me destrancar, e tenta tranquilizar:
- Não se preocupe, não vou te chavear aqui dentro.
Passados alguns minutos, ligo novamente.
- Não atenderam lá na Vigilância, vou ficar tentando.
Tento eu mesmo ligar para a Vigilância. Nada. Subo as escadas e bato nas portas dos outros laboratórios, na esperança de que outro nerd sem vida tenha ficado até tão tarde, e que tenha a chave da dita porta. Bato na primeira porta: nada. Bato na segunda porta: nada. Bato na terceira porta: nada. Mas dispara o alarme.
O alarme do laboratório em um volume ensurdecedor toca num tom estridente e como um trem de passageiros na China: superlotado e comunista, ocupando todos os lugares de forma igualitária. Não há refúgio. Não há escapatória. Tento ligar novamente para a Vigilância, pensando que é melhor avisar que fui eu quem disparou o alarme, e não um ladrão ou o Fantasma do Zaguinho - o aluno que, nos anos setenta, morreu no começo do semestre e ainda assim foi aprovado em Cálculo e cujo espírito assombra os corredores da faculdade e pratica traquinagens dignas de vilão de filme pré-adolescente.
Veja bem, mesmo com o alarme (de volume tão alto que deve ter causado problemas nos equipamentos da Estação Espacial Internacional) e telefonando para os encarregados da segurança, ninguém apareceu. Suponho que um ladrão não seja tão cortês a ponto de telefonar para as forças vigilantes para reportar o furto em andamento, mas na minha universidade, caso ele o faça, mesmo assim não será pego.
Enquanto enfiava objetos avulsos nos ouvidos na tentativa de salvar o que restava de meu sistema auditivo, tive tempo de, pela porta de vidro, ver a pessoa que me prometeu não me deixar preso sair com os colegas de trabalho e, de fato, me deixar preso. Tive que esperar duas horas até o alarme morrer - e infelizmente morreram também neste período os refugiados, por exagero na ingestão de ração para gato. Erro meu, que sempre fui ruim com essas medições a olho nu, mas infelizmente no laboratório não há balança de precisão. Ironicamente, da última vez que encomendamos uma, recebemos os refugiados de Botswana.
Sem alternativa, retornei ao laboratório onde passei uma noite miserável de fome, ansiedade, terrores noturnos, suores frios e baixa conectividade na rede externa. E assim, para que ninguém tenha que passar pelo que passei, tomei a já mencionada decisão. Se eu tivesse comida, água e um bom material de leitura talvez não tivesse sofrido tanto; mas o que muito me fez falta foi a tal arma com a bala de misercórdia.