A República
Cheguei ao Rio de Janeiro para ficar um bom tempo e vim morar em uma república de estudantes, a República da Sagrada Castidade ('ReSaCa'). Sem conhecer nenhum dos moradores antes de chegar, me espantei com o modo de vida mas não tive problemas em me adequar a ele. Não temos copos, mas temos um Nintendo 64 e Mario Kart, o que é o suficiente para uma vida feliz, aparentemente.
A questão central e mais difícil de ser compreendida sobre o lugar é: como é que isso funciona? Em alguns pontos, parece uma comuna socialista ou acampamento de indigentes, em outros, só um acampamento de indigentes. Explico: tomei a liberdade de fazer alguns cálculos e o número de pessoas dormindo no apartamento com regularidade é, de fato, maior que o de camas e colchões infláveis. Alguém deve estar dormindo escondido no banheiro.
Sobre o comunismo latente: o regime de partilha dos bens também é diferente de tudo que já tinha visto em vida; não se sabe quem é o responsável pela compra de itens como papel higiênico, shampoo, pasta de dente, sabonete e outros, apesar de serem compartilhados por todos (menos por mim, que escondo essas coisas para uso pessoal na gaveta de cuecas - sou um traidor dos costumes locais). Em parte pela falta de responsabilidade objetiva, alguns períodos de falta são comuns e todos tratam a questão como uma prova de resistência: quem não aguentar mais lavar o cabelo com sabonete que compre o shampoo. E alguém sempre compra.
Em tempo: foi aqui que conheci o termo 'shampoo homeopático'. É aquele em que o banhista enche o pote de shampoo já completamente vazio com água, chacoalha e aproveita o que surgir de espuma. Reza a lenda que o processo pode ser repetido por até cem vezes, com admirável eficácia no tratamento de pontas duplas, raízes olheosas e outros termos de propaganda do Seda ceramidas.
No mais, tudo vai muito bem, exceto pelos poucos reveses: o banheiro interditado para reformas pelo menos uma vez por mês, as lâmpadas que queimam a cada quinze dias, a infiltração na parede tão profunda e antiga que tem nome de batismo, o ventilador de teto que cai enquanto desligado sem razão aparente e o corpo humano semi-decomposto que encontramos dentro do armário da pia da cozinha.
Somos felizes competindo em campeonatos de Mario Kart na madrugada, discutindo política e Direito, dormindo espalhados, bebendo tudo em uma xícara com a alça quebrada, no escuro, sem banheiro confiável e com o risco de colapso da estrutura física em geral. E somos mesmo, é tão divertido morar com pessoas estranhas que estou pensando em domesticar algumas.